terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A grande mãe. Capítulo VI: Conclusão.

- Você lê, Bohr?
- Só o catálogo de prostitutas, por quê?
- Eu sempre li bastante. Depois que minha santa mãe se foi, meu pai colocava um livro no meu colo, ordenava que eu o lesse até o fim e saia de casa. E ele nunca parava em casa.
- E eu pensei que a MINHA infância tinha sido uma merda.
- Mas a questão não é essa. O que eu quero dizer é que tudo isso que aconteceu do carro até aqui me lembrou muito um cara. Um escritor.
- Escritores são todos uns babacas.
- O cara chamava-se Chales Bukowski. Um americano fodido que virou o fodão depois de velho. Bebeu, fumou, apostou e meteu. Até morrer com seus setenta e algo.
- Olha só. De repente, ele não parece tão babaca assim.
- De fato ele não era. Na verdade, ele me lembrava muito você. A única diferença é que ele escolheu uma arte diferente da sua.
- Não me compare com um escritor, seu merda. Todo mundo curte beber, fumar, apostar e meter. E não é porque um americanozinho de merda fez disso o ganha-pão dele que eu tenho algo em comum com esses tipos.
- Acontece que, esse cara, meu chapa, tinha um talento que só você, na Família inteira, tem. A capacidade de apressar as coisas. Explodir. Dar um fim em tudo, de uma hora pra outra. Interromper tudo e mudar o curso das coisas. Pelo simples fato de ter considerado isso uma boa ideia.
- Não sou eu que dito o fim. É o sangue no chão.
- Se for assim, o fim dessa merda toda está próximo.

Olhei admirado para o rosto de Sergey. Estava diferente. Parecia um homem, realmente. Transpirava confiança, coragem, sabedoria. Comecei a pensar numa resposta, mas me perdi em um sentimento confuso. Respeito, talvez. Ele se levantou, olhou para mim, fez sinal de positivo com a cabeça e foi até a porta. Admirei o cenário ao meu redor. E, como o novo homem com o qual conversava a pouco disse, decidi dar um fim em tudo. Num pulo, me pus de pé, limpei a sujeira das minhas roupas, com uns tapas coloquei meu cabelo no lugar. Armas e colhões. Ambos nos lugares certos.
Me virei em direção a porta, tendo como destino a incerteza. Ouvi uma risada distante. O som das risadas foi se intensificando. E lá do fundo, vi dois homens caminhando. Me senti no corredor da morte. Imóvel, em minha cela, esperando pelos meus capatazes. Sergey vinha acompanhado do Pai, seu novo melhor amigo, aparentemente.
- Bohr! Eu estava falando de você com meu amigo Sergey aqui!
Antes que eu pudesse reagir, Sergey sacou sua arma e enfiou quatro balas nos meus braços e mãos.
- Acho que você não vai precisar disso aqui, não é? – disse o Pai, tomando posse da minha arma.
- Já isso aqui pertence à Família. – disse novamente, tomando a Magnum dourada de Yuri.
- Você sabe o que eu acabo de fazer? Acabo de levá-lo de volta ao dia em que te encontrei. Com medo, desamparado, sozinho. Só mais uma criança.

O homem era bom no que fazia. Melhor que eu. Muito melhor que eu. Anos depois, corpos depois, vidas depois, eu estava de volta às minhas origens. E eu não gostava disso. Definitivamente, não gostava. Tentei me manter em pé, mas minhas pernas fraquejaram. Fui ao chão e lá fiquei, olhando para cima e tentando decifrar cada movimento dos dois.
Do chão vi Sergey deitar-se de bruços aos pés de Ludwig. Era um ritual. Eu fiz a mesma coisa aos dezesseis anos, quando entrei pra Família. Agora, para quem já faz parte dela, esse ritual significa um lugar garantido na mesa da Tríplice, um grupo seleto que pega as melhores faxinas e, consequentemente, as melhores remunerações. E lá, deitado com o peito para baixo, Sergey não teve a chance de ver Ludwig sacar a Manum de Yuri e enfiar três balas em sua nuca.
- Hahahahaha. Você é um verdadeiro covarde filho da puta, não é, Ludwig? E eu precisei matar o viado do seu filho pra poder descobrir isso. Veja como é a vida.
- Covardia foi o que vocês fizeram com o Tristan. O que eu estou fazendo é vingança.
- Vingança. Por que tudo tem que girar em torno da vingança, dessa pequena palavra de merda?
- Tá vendo porque eu estou aqui, de pé, e você aí, no chão? Você é só um garoto, Bohr. Substituível em qualquer função e em qualquer lugar. Agora, entenda de uma vez por todas. A guerra move o mundo, a vingança move as guerras. Faça as contas. Homens, mulheres, crianças, velhos, a humanidade. Tudo é movido pela vingança.
- Olha só que mundo maravilhoso nós vivemos. A vingança move a porra da humanidade, e eu aqui achando que ela só movesse mais grana para a conta bancária da Família. Pode confessar. Foi isso que te colocou onde está hoje.
- Isso o que?
- Isso que você faz! Pegar uma merdinha, algo insignificante, sem sentido algum e, com um discurso planejadinho e alguns gestos cansados, tornar em algo grandioso. Tornar a PORRA DO COMBUSTÍVEL DA HUMANIDADE.
- Homens pequenos enxergam as coisas como elas são. Homens grandes enxergam as coisas como eles são.
- Quem disse isso? Foi o tal de Bukowski? O americano fodão?
- Não, acabei de criar. É isso o que eu faço, não é? Eu só não sabia que você lia Bukowski.
- Eu não leio. O cara que você acabou de matar me falou dele uns minutos atrás.
- Por acaso você lê, Bohr? – perguntou Ludwig, enquanto ajustava a arma de Yuri.
- De novo essa pergunta?
- Simplesmente responda e depois cale a boca.
- Só Bukowski e o catálogo de prostitutas, por quê?
- Se você lesse, ia perceber que a maioria dos autores torna a morte algo romântico, extremamente elaborado e dramático. É como um tique nervoso literário que só não atinge uma privilegiada parcela desses babacas das palavras.
Comecei a prestar atenção e ele continuou.
- O que não faz sentido nenhum, você não concorda? Eles colocam a morte como o clímax, enrolando por páginas e páginas só para perder mais páginas descrevendo minuciosamente o ato de morrer. Quando na verdade ela não é porra nenhuma, além do fim. Colocam a morte como o estopim para o sofrimento em sua mais pura forma. A essência da decadência. Quando na verdade ela não é porra nenhuma, além de uma bala e um punhado de pólvora. Sabe o que eu acho? Que esses escritores apaixonados pela morte e seus personagens falecidos deveriam largar suas canetas e segurar uma dessas belezas aqui. Ver como ela torna toda essa ladainha de morte e sangue simples. Quase sem graça, se não fosse todo o processo até chegar a um momento como esse. Quando isso acontece, aí sim, teremos grandes obras.
Ludwig parou, ajustou a gravata e prosseguiu.
- O que eu vou te falar em seguida é um segredo sagrado. Você consegue guardá-lo?
- Acredito que não.
- Tudo bem, em breve não fará mais a diferença mesmo.
- Fala logo, caralho.
- Eu sempre quis ser escritor. Sério.
- Se você escrever tão bem quanto discursa, porra, eu compro tudo o que você escrever.
- Hahaha, assim você quase me faz pensar duas vezes, meu filho. Mas, não. Não faço o tipo babaca. Eu prefiro viver. Eu faço da minha vida uma grande obra. E, advinhe, esse é um momento daqueles que os escritores adoram.
- Isso daria uma história e tanto, Pai.
- Meus setenta e tantos anos até aqui, sim. Esse momento, não. Esse momento será como eu acho que ele deve ser. Sem romance, sem glamour, sem exageros.
- Sem graça.
- É. Sem graça.
Vi Ludwig pressionar o gatilho. Depois disso não lembro de mais nada.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A grande mãe. Capítulo V: Reação.

Enquanto eu avançava em direção aos dentes de Boris, me deleitava com seu semblante aterrorizado. As pupilas estavam completamente dilatadas, dando aos seus olhos um ar espectral. Seu nariz aberto borbulhava sangue, revelando uma respiração desesperada. Aquele era o segundo nariz que eu havia partido ao meio em um único dia. Era um bom saldo. Há um centímetro de seus dentes, seus olhos se fecharam e eu parei. Queria me divertir mais.
- PUTA MERDA!
- Que sustinho, hein?!
- Bohr, PELO AMOR DE DEUS, ME DEIXA IR!
- Tá bom, eu te deixo ir. Deixa só eu cortar as cordas.
- Eu sabia que ainda restava bondade em você. EU SABIA.

Caminhei até a ponta inferior esquerda da mesa, peguei o machado já afiadíssimo, mirei bem a corda e, com toda a minha força, fiz o corte. Pouco abaixo do joelho esquerdo de Boris.
- Ops. Errei.
- AAAAAAAAAAAAAAAAH, DEUS DO CÉU! QUE DIABOS É ISSO?!?! PUTA! QUE! PARIU!
- Desculpe. Sério.
Não ouvi nenhuma resposta. Me aproximei de seu rosto ensaguentado.
- Bohr... Bohr... Por tudo que é mais... Bohr... Por quê? – escorria sangue de sua boca.
- Você não entende, não é? VOCÊ SIMPLESMENTE NÃO ENTENDE, SEU MERDA.
- Bohr...
- Eu não tenho absolutamente NADA a perder. Não sei quanto tempo vou durar. Um dia, um mês, um ano, um século. O futuro não pertence a mim, nem a ninguém. Deus é o caralho. Buda é a puta que pariu. Stalin que se foda. Eu só quero aproveitar o agora, o instante. Por isso, meu camarada, a pergunta que você deve se fazer não é ‘por que’, mas sim ‘rápido ou devagar’.
- Rápido... Por favor... Rápido.
- Resposta errada.

Boris começou a gritar desesperadamente. Tão, mas tão alto, que seus gritos chegaram ao ponto de incomodar. Eu. Incomodado. Com gritos de dor e desespero. Muito estranho. Fui até a porta dar uma espiada em Sergey. Sentado no chão, segurava os joelhos com toda a força, chacoalhando-se para frente e para trás. Cochichava algo, parecia uma oração ou uma canção de ninar. Meus lábios se contraíram espontaneamente. Era um sorriso. Realmente muito estranho.
Os gritos cessaram. Fechei a cara e voltei ao trabalho. Limpei o machado na camisa, caminhei até o lado direito da mesa e larguei-o sobre a perna direita. Corte perfeitamente simétrico com a perna esquerda. Eu estava ficando bom naquilo. Não houve reação sonora dessa vez. Mas, a expressão... Ah, a expressão! O horror, o horror!
- Ô, Boris! Como eu gostaria que você visse isso. Eu pareço a porra de um cirurgião! Cara, eu sou foda.
- Bohr... Vem...
Atendi seu pedido.
- Sabe o que é o mais engraçado ni-nisso? O Pai ia pa-passar a ca-cade-cadeira para você.
Puxou o fôlego, engasgou, cuspiu sangue e continuou.
- VOCÊ! VOCÊ, PAI! VOCÊ! VOCÊ! HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!

As risadas ecoavam incessantemente pelo galpão. Batiam nas paredes, tropeçavam nos membros apodrecidos, mergulhavam no sangue. Mas sempre encontravam o caminho de volta aos meus tímpanos. Doía. Me senti fraco e não tive vergonha de demonstrar. E, como todo homem fraco, eu agia sem pensar. Sem aproveitar. Sem compromisso.
A passos largos, fui até a mesa. Martelo na mão esquerda, machado na mão direita. Eu me movia como um insano. Como quem eu realmente sou. Reduzi suas duas pernas a um monte de pedaços desordenados e aleatórios. Grandes, pequenos. Triangulares, quadrados. Com o martelo, esmigalhei suas mãos e braços, até eles ganharem a consistência de gelatina. Ao fim, enlacei-os com o cuidado e o prazer que uma mãe ensina o filho a amarrar os cadarços.
Boris não falava absolutamente nada. Só tremia e tentava manter os olhos abertos. Estava catatônico. Queria estar morto. Implorava em silêncio pela morte. Olhei no fundo dos seus olhos confusos.
- Camarada, você não sabe o quanto é bom. Eu nasci pra isso. Eu simplesmente nasci pra isso. Eu vou desamarrar você aqui para você ver o que eu fiz. Olha, vou ser sincero com você. Acho que você é a minha obra prima.
Desamarrei sua cabeça e puxei seus cabelos, dando-lhe uma boa visão da tragédia que ele havia se tornado.
- Vê só. O nó perfeito nos seus braços. O mosaico que fiz com suas pernas. Por sinal, esse tal mosaico se parece bem com a nossa bandeira, né? Tudo vermelho, coisa e tal. Eu, se fosse você, estaria orgulhoso.
Boris não movia um músculo da boca.
- QUAL É, BORIS? NÃO VAI COMENTAR NADA? NÃO VAI ELOGIAR?! SE VOCÊ NÃO FALA, TEM BOCA PRA QUÊ?

Peguei o martelo e soquei bem no meio dos seus dentes. Em duas tacadas, seus dentes haviam desaparecido. Sua boca era um grande negro sem fim, como minhas memórias. O desmaio foi quase instantâneo. De repente, aquilo não tinha mais graça nenhuma. Olhei para minhas mãos sujas de sangue e me senti um covarde, um carnívoro filho da puta, uma madame consumidora de peles. Peguei a Magnum de Yuri no meu bolso traseiro e coloquei uma bala na cabeça de Boris. Aquele foi o meu pedido de desculpas. Envergonhado e cabisbaixo, fui até o lado de fora e me sentei ao lado de Sergey.
- Qual o seu segredo, Sergey?
Não houve resposta.
- Sergey? Responde, porra. Qual o seu segredo?
- QUE SEGREDO?! SEU DOENTE DO CARALHO! QUE SEGREDO?!
- Como você convive dia após dia com a vergonha? Como você consegue se olhar no espelho?
- E quem disse que eu convivo? – ele parecia disposto a ajudar.
- Eu falo sério. Qual é. Você deve ter algum segredo.
- Na verdade, sim.
- E?
Sergey levantou a camisa e mostrou sua barriga. Cortes a cobriam por inteiro.
- Sempre que termino uma faxina, eu faço isso. Pego um pedaço de vidro e vejo até onde aguento. Tento tirar a sujeira de dentro de mim. A vergonha. Essa merda toda. Adianta pouco, mas adianta.
Cavoquei o bolso esquerdo do paletó e ainda estava lá.
- Tá vendo isso aqui, meu chapa?
Estendi a Sergey uma foto antiga, amarelada e corroída pelo tempo.
- Bonita. Quem é?
- Minha mãe. Ela é sueca.
- É? Isso quer dizer que...
- Sim, ela ainda está viva. Pelo menos é o que diziam as cartas dos meus irmãos, três anos atrás.
- E por que você só olha pra ela numa foto, e não em carne e osso?
- Ela tentou me abortar, sabe? Não conseguiu. Depois, aos cinco anos, ela tentou me trocar por um quilo de carne. Também não conseguiu. Aos nove ela tentou me matar. Por pouco obteve sucesso. Depois disso, não lembro de mais nada. Fugi. Fui pulando de reformatório em reformatório. De beco em beco. De viela em viela.
- Essa é a pior história que eu já ouvi.
- Pois é.
- Então me diz por que guardar essas lembranças no bolso do paletó?
- Não sei, ela simplesmente me dá força. Me dá uma razão para viver.
- É. O amor é algo realmente incrível.
- O amor, não. O ódio.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A grande mãe. Capítulo IV: Ação.

Me permiti observar a tela verde do celular por uns segundos. Me permiti sentir medo. E, Deus, como eu me permiti sentir medo. Acredito que todo o medo que mantive resguardado desde os seis anos de idade vieram à tona nesses segundos. Meus lábios, minhas mãos, meus pés, meus ombros. Todos tremiam incessantemente, irritantemente, desesperadamente. Com a mão, procurei por algo no bolso esquerdo do meu paletó. Encontrei. Respirei aliviado. Saber que ainda estava lá era o que eu precisava para me colocar no lugar. Enfim, com as mãos frias como um cadáver, atendi.
- Alô. – saudou a voz cansada do outro lado da linha.
- Diga. – respondi, sem o mínimo esforço para ser sutil.
- Bohr?! É você?!
- Sim, Pai.
- Posso saber o que diabos você está fazendo com o telefone do meu filho?
- Seu filho está morto, Pai.
- Morto?!
- Sim. Ele tá aqui do lado, completamente furado. Morto. Simples assim.
- Então, aconteceu. Finalmente aconteceu.
- Você sabia, não sabia?
- Sim. Ele já estava morto pra mim há muito tempo.
- Entendo. – concordei, tentando disfarçar a esperança que invadiu minha mente.
- Você sabe, não sabe?
- Sim, tanto é que fiz o que fiz.
- Eu não me refiro ao meu filho. Me refiro a você.
- Como assim?
- Eu vou caçá-lo, Bohr. Caçá-lo impiedosamente. Como cão e gato. Como vício e viciado.
- Eu pensei que estava fazendo um favor ao senhor, Pai.
- Você me fará um favor quando estiver morto, Bohr. Eu só respirarei novamente quando sentir o cheiro do seu sangue misturado ao cheiro da pólvora. Meu coração só voltará a bater quando o seu se silenciar.
Me calei.
- Me entenda, Bohr. Eu não desejo o mal a você. Acontece que você matou meu filho. Sangue do meu sangue. Minha prole. Meu nome. Meu legado. Minha história. E no momento em que você o fez, arrancou tudo isso de mim. Meus setenta e quatro anos jazem aí, ao seu lado.
- Mas, Pai...
- Meu filho.
- Sim?
- Eu não sou seu pai.

O telefone parou de falar. Eu parei de falar. O silêncio reinou absoluto. Mantive-me lá. Sentado. Largado. Morto. Não faço ideia de quanto tempo de passou desde que desliguei o telefone e só começo a despertar do meu transe agora, que vejo, lá no fundo, Sergey correndo desesperado até mim. Tento imaginar o que será dessa vez. Permaneço sentado, já esperando más notícias.
- Bohr! Bohr! Bohr! Por Deus! Estamos fodidos. – esperneou, mal se aguentando em pé.
- Calma. Seu viado. Recupera esse seu fôlego de viadinho. E me diz, viadamente, o que foi.
- Estamos fodidos. Lá fora. Fodeu tudo.
- Viado.
- O quê?
- Nada, eu só acho divertido te chamar de viado. – meu senso de humor é imortal.
- Foda-se. Parou um carro preto lá fora. Se parece muito com o do Boris.
- E você viu se o Solonik estava junto.
- Só o Boris.
- Ótimo. O Solonik seria um problema, o Boris, não. Respira fundo, enxuga o suor e vai lá abrir pra ele.
Sergey virou-se de costas e fui cumprir suas ordens.
- Sergey!
Parou no meio do caminho, sua ansiedade era facilmente perceptível.
- É melhor você ficar lá fora.

Eu realmente não sei por que implico tanto com o Sergey. Ele é obediente como um coelho assustado. Agora, penasndo bem, vai ver é por isso. Caminho até uma mesa velha e permanentemente manchada de vermelho. Rapidamente, separo um martelo, um machado, corda, álcool e um vidro com sangue envelhecido e tripas. Vou até a porta receber minha ilustre visita. Boris é um cara lamentavelmente comum. Nem alto, nem baixo. Nem gordo, nem magro. Peso morto. É um caso parecido com o de Sergey. Só está na família por ser irmão de Solonik.
- Bohr?! O que você faz aqui, meu camarada? – o cara é simpático, coitado.
- Eu que pergunto.
- Meu irmão Solo tá no meio de uma faxina e tá precisando de uns instrumentos. Você não acredita. O Vladimir sabe? O dono da padaria do Vlad. Então, tá lá, pendurado de cabeça pra baixo, há umas três horas, com a rôla de fora. O sangue subiu todo pra cabeça, que já tá mais roxa que a cabeça do pau do cara. O Solo tá esperando subir tudo pra ver se jorra sangue pela testa. Eu apostei que não dá. Ele apostou que sim. Quem ganhar leva o mindinho.
- Legal sua história. Mas isso significa que você ainda não sabe, não é? – deixei de papo furado.
- Não sei? Sei?

Com uma força inigualável, lancei minha testa ao nariz de Boris. Ele caiu rápido, implacável. No chão, seus olhos esboçaram uma reação. Pisei em sua cara. Seus olhos permaneciam abertos. Pisei novamente. Apagou. Levantei-o sem maiores problemas. Joguei seu corpo mole e fraco na mesa. Amarrei os pés, a cabeça e os braços. Dali pra frente, ele era minha posse. Fui afiar o machado, enquanto ele continuava desmaiado. Uns bons minutos se passaram e escutei uns gemidos, que aumentaram rapidamente. Era uma sinfonia de dor. Música de verdade.
- MEU DEUS DO CÉU! O QUE VOCÊ TÁ FAZENDO, BOHR?!?! QUE PORRA É ESSA?
- Que porra é essa? Bem, vou tentar sem breve. O Tristan, tá vendo ele ali? Então, ele é um puta dum viado. Aí eu gastei um pente inteiro nele. E aí você chegou. E agora você tá aqui. E é isso.
- DESGRAÇADO, FILHO DE UMA VAGABUNDA! ESPERA O SOLO DESCOBRIR. EU VOU ALMOÇAR A PORRA DO SEU CORAÇÃO. EU VOU BEBER O CARALHO DO SEU SANGUE!
- Meu amigo, preste atenção. Não me culpe por tudo o que vai acontecer com você nos próximos minutos. Culpe o destino. O acaso. Você só estava no lugar errado, na hora errada.
- AAARRRRRRRG, SEU...
Levantei o martelo o mais alto possível e com toda a força que coube nos meus braços, levei-o em direção aos dentes de Boris. Que os jogos comecem.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A grande mãe. Capítulo III: Decisão.

E lá estava eu, cara a cara com meu fim. Dourado, frio, sem emoções. Parecia-se bastante com o Pai. Baixei a arma e verifiquei a quantidade de balas no tambor. Completo. Virgem. Engatilhei-a cuidadosamente, com carinho. Não é todo dia que eu posso atirar uma calibre cinquenta. Com certeza o impacto seria muito maior que a minha nove milímetros. Respirei fundo. Me senti preparado. Olhei para trás e vi Yuri, de costas para mim. Eu precisava dizer uma última palavra.
- Yuri?
- Sim?
- Adeus.

Ainda ajoelhado, fechei os olhos e apertei o gatilho com firmeza. Uma vez. A testa se abriu. Duas vezes. Cérebro no asfalto. Três vezes. Lá se vai o olho esquerdo. Quatro vezes. Adeus, nariz. Cinco vezes. Maxilar partido ao meio. Seis vezes. Rosto? Com um pouco de sacrifício me levantei e fui conferir o estrago que tinha feito com o velho Yuri. Acho que me excedi. Seis balas de magnum. Não precisava de tudo isso. Ele não merecia. Eu não tinha o direito. Meus sentimentos ameaçaram um motim, mas eu os contive a tempo. Abri o porta malas. Peguei-o no colo e joguei lá dentro. O olho e o maxilar ficaram no chão. Chutei-os para longe.
Abri a porta e entrei no carro, dessa vez no banco do motorista. Olhei para trás e Sergey estava em pânico. Completamente travado. Branco como um fantasma, violentas gotas de suor escorriam pela sua testa. A boca aberta, as mãos apertadas. Focalizei seu rosto com o retrovisor e dei partida no carro. Entrei na estrada a cento e vinte por hora e assim decidi permanecer. Vinte e cinco minutos me separavam da Fábrica. Infelizmente, eu teria muito tempo para pensar nos meus próximos passos. Fitei os olhos no horizonte. Branco, morto, sem graça. Depois de mim, a neve era a maior assassina que a Rússia já viu.
Infindáveis minutos depois, de longe já dava para ver a Fábrica. De fato, ela chamava a atenção. Hoje em dia, não se vê muitos outros portões pretos de três metros de altura, com uma estrela talhada em bronze no topo. Agora, se a entrada já chamava a atenção, o interior era um inferno gelado. Máquinas de triturar carne, cadeiras com algemas, materiais de tortura, armas, sangue e restos de corpos em decomposição. Era para lá que qualquer membro da Família deveria se dirigir, junto de sua carga viva ou morta, ao fim de uma faxina. Ironicamente, o local que deveria marcar o fim de uma faxina, era só o começo dela.
Parei em frente ao portão e desliguei o carro. Inclinei-me um pouco para trás e acertei meu melhor soco no nariz de Sergey. A reação foi imediata, assim como o sangue. Sem falar nada, desci do carro, alongando-me para abrir o portão de meia tonelada. Sergey veio logo atrás, com a cabeça inclinada. Não restava dúvidas de que ele tinha entendido a mensagem. O portão se abriu com um som perturbador, digno de filmes de terror hollywoodianos. Refleti sobre maneiras diferentes de fazer americanos sangrarem. A mais criativa foi trancá-los num ringue e jogar um único cheeseburger lá dentro. Entrei no carro e acelerei. Era isso. Eu estava novamente na Fábrica. Lar doce lar.
Um a um, as cargas e Yuri foram despachados. Alinhei-os um ao lado do outro. O traficante à esquerda, Tristan no meio e Yuri à direita. Sem nem pensar, retalhei em dez o corpo do traficante e fui passando as partes para Sergey, que as lançava no triturador. O nariz dele ainda pingava um sangue escuro. O vermelho, em contraste com a neve, era maravilhoso. Mais maravilhoso ainda eram os pedaços de corpo, que entravam relativamente inteiros e, em questão de segundos, viravam carne moída. Ó, violência, como és bela. Nunca me deixe. Por Deus, nunca me deixe.
Trabalhávamos como uma perfeita equipe. Sergey limpava o chão e eu o triturador. Era um trabalho sujo. Era um trabalho que eu realmente gostava de fazer.
- Cacete, Sergey! Pra que tanto capricho? Logo mais a neve derrete e lava o sangue.
- É isso. O sangue.
- Tá. É o sangue. E o que que tem o sangue?
- Eu não suporto sangue.
- Talvez esteja na hora de você fazer uma faculdade. – levantei a realidade.
- Entre uma faculdade e a sua família, você ficaria com o quê? - Sergey covardemente perguntou.
- Eu? Eu ficaria com meus colhões.

Como era de se esperar, Sergey escolheu o silêncio como resposta. E assim as coisas permaneceram por uns minutos. Bons minutos, diga-se de passagem. Até que, quando tudo parecia estar melhorando, um ruído rasgou e mijou em cima da minha tranquilidade. Segundos depois, quando meus ouvidos já estavam devidamente acostumados, percebi tratar-se de uma música. A mais filha da puta das músicas. Impaciente, procurei a origem daquela tortura por todos os cantos. A segunda ironia do dia. Em uma sala de tortura eu buscava uma maneira de dar um fim à própria.
E ao passo que a música continuava e minhas tentativas de encontrá-la eram frustradas, eu me tornava um poço de ódio, só esperando Sergey voltar lá de fora para aliviar minha raiva. Encostei perto do corpo de Tristan para pensar numa estratégia e percebi que a música estava cada vez mais perto. Grudei meu ouvido ao seu corpo e comemorei. Havia encontrado. A música parou. Puxei um objeto do seu bolso traseiro. Olhei. Um calafrio percorreu minha espinha em velocidade recorde. Tentei me manter corajoso, mas por uns instantes não consegui. Na tela do celular, lia-se Ludwig Kalashov, carinhosamente chamado de Pai.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A grande mãe. Capítulo II: Negociação.

Virei a chave e levantei a tampa. O cheiro subiu forte, impiedoso, embrulhando meu estômago. Os corpos ainda exalavam uma espécie de calor e o sangue ainda escorria, lentamente. Com muita calma, passeei com os olhos por cada um deles. Contei um total de dezoito furos no Tristan. E mais umas dezenas no traficante viado. Sorri orgulhoso, superior como sempre. Puxei toda a sujeira que encontrei dentro de mim e as cuspi em cima daquela pilha de lixo. Bati o porta malas com força, o que fez respingar um pouco de sangue e talvez miolos no meu terno preto. Yuri desceu do carro e veio ao meu encontro.
- Cacete, você não consegue parar de fazer sujeira.
- É assim que gosto das coisas, Yuri. Sujas. Reais.
- Ahhh, garoto. Um dia, que talvez pode nem chegar, você vai ver que não é assim que o mundo gira.
- É assim que ele gira pra mim. Não tenho do que reclamar até agora.
- Você já esteve no Japão?
- Como?
- No Japão. Você já esteve por lá?
- Claro que não. Nunca precisei fazer uma faxina por lá.
- Pois é. Há uns três anos atrás, fui até lá persuadir um Yakuza a fazer um harikari.
- Harikari? Pensei que você fosse um assassino, e não um diplomata.
- A maior arma que nós temos são as palavras, camarada. Enfim, depois de feito, parei num bar pra dar uma cagada e, ao dar a descarga, qual foi a minha surpresa quando vi que a água girava ao contrário.
- Sério?
- Sério.
- Tá, mas o que essa porra dessa água tem a ver com tudo isso?
- Tem a ver que, pra eles, a água girava pro lado certo, mesmo girando para o lado errado. É a mesma coisa que acontece com você e esse seu mundinho.
Parei para refletir por alguns segundos.
- Yuri?
- Sim.
- Talvez você tenha razão. – consenti, de cabeça baixa.
- É claro, meu bom garoto. Você pode aprender muito comigo. A vida é uma merda, eu sei. Mas ela não precisa ser sempre uma merda.
- Mas, me diga, quem eu vou culpar pela merda que nossas vidas é?
- Mas, me diga você, pra que um culpado, um responsável pela merda das nossas vidas?
- Justiça.
- Justiça? JUSTIÇA? Não seja tolo. O que foi que você disse agora pouco no carro, mesmo? Alguma baboseira sobre a inexistência da justiça e o reinado absoluto de leis fracassadas.
- Foi mais ou menos isso.
- Qual foi a última vez que você esteve em uma mulher?
- De graça?
- Claro.
- Nunca.
- Muitas coisas começam a fazer sentido agora. Sabe? Quando você se esquece do amor, o verdadeiro amor, acaba se lembrando dos sentimentos opostos. E esses, meu filho, ao contrário do amor, nunca mais vão embora.
- Yuri, você me falar sobre água de privada japonesa, tudo bem. Agora, guarde sua melação amorosa para suas prostitutas. Eu só quero saber uma merda de uma coisa.
- Diga, Bohr.
- O que eu faço agora?
- Sinceramente?
- De preferência.
- Honre suas marcas, sua história, sua família.
- É o único jeito, não é?
Yuri só concordou com a cabeça. Seu silêncio se esforçava para demonstrar tristeza.
- Então que assim seja. Eu só gostaria de uma coisa.
- O que quiser.
- Que fosse feito com a sua arma.

Mais uma vez, Yuri concordou com a cabeça. Buscou por uns instantes seu bolso traseiro. Estendeu-me sua Magnum dourada. Mesmo sem qualquer sol, ela reluzia bravamente. Somente quinze pessoas haviam visto um fim naquelas balas calibre cinquenta. É um número mínimo, considerando um homem com mais de mil e trezentas mortes no currículo. A aceitei de bom grado. Com um firme aperto de mãos e um olhar quase sincero, dei adeus ao meu velho parceiro. Yuri permanecia firme, integralmente intacto. Dei cinco passos na direção contraria. E qual foi a minha surpresa ao ver que, a cada passo, não me vinha nada à cabeça. Nenhuma lembrança ou memória, nenhum prazer ou desprazer. Só uma aflição, uma necessidade de cumprir com meu dever. Parei. Ajoelhei. Colei o cano em minha têmpora direita.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A grande mãe. Capítulo I: Direção.

O ar dentro do carro está pesado demais para um pulmão maltratado como o meu. O responsável por isso eu não sei dizer quem é. Podem ser os charutos e cigarros insistentemente sugados pelos babacas ao meu lado. Pode ser o cheiro de sangue fresco que vem do porta-malas. Ou pode ser a tensão. Ouço um bater de dentes vindos do banco de trás. Faz frio lá fora, mas eu sei que o que Sergey está realmente sentindo é medo, o mais perigoso dos sentimentos. Ao meu lado, no banco do motorista, Yuri levanta a mão esquerda. Noto a existência de algo estranho embaixo de sua unha. Deve ser cérebro.
- Bohr. A gente precisa fazer alguma coisa. Você sabe disso. – Yuri me questiona, chacoalhando as pernas repetidas vezes.
- É claro que eu sei. E pelo visto eu sou o único aqui que ainda sabe onde está a própria cabeça.
- Seu moleque. Na KGB você não duraria duas horas.
- Você esqueceu que aqui não é a KGB. Não há justiça, só há leis, que para nós não existem mais.
- Seu bolchevista dos infernos. O trabalho era pra ser simples. Um passeio no parque.
Calei e consenti.

De fato, o trabalho era simples. O Pai considerava, no almaço com as instruções, como uma “pequena faxina”. Um traficante pouca bosta estava começando a incomodar as transações entre o leste e o oeste da motherland. Era entrar, erguer as armas, deixar que elas fizessem seu trabalho e sair, levando o mindinho como souvenir. Entrar foi fácil. A porta traseira destrancada trouxe à tona uma estranha sensação de boa vizinhança. E foi aí que a tranquilidade e o prazer em trabalhar chegaram ao fim. Barulhos estranhos vindos do quarto chamaram a atenção. Sergey foi na frente. Abriu a porta. Explodiu em gargalhadas. Eu cheguei depois, seguido de perto pelo Yuri. Diante dos meus olhos, dois animais, um dentro do outro, olhavam assustados para seus capatazes. Sergey só parou de rir quando descarreguei dois pentes da minha Kalashinokov no corpo suado das duas bichas.

Uns segundos de silêncio perfuraram a bagunça que se passava em nossas cabeças. Agora, ouço Sergey chorar. Ele sempre foi fraco. Um peso morto que, de vez em quando, se arrasta, como se pedisse clemência. É filho de Noukhaev, uma lenda na Família devido ao sadismo inexplicável. Deu conselhos ao Pai que o colocaram onde ele está hoje. E é só por isso que ele foi selecionado para juntar-se a mim e a Yuri, os líderes no ranking de mindinhos coletados. Yuri se vira em minha direção. Está tão perto, que posso sentir seu bafo de vodka queimar minhas narinas.
- Pensasse antes de atirar, seu verme. – disse, sem tentar esconder a irritação.
- Sodomia não é passível de julgamento. – respondi, tentando me manter são.
- Seus princípios não valem de nada quando estamos falando do filho do Pai.
- Não tinha como saber que aquela BICHA ERA O TRISTAN. BICHA DO CARALHO. TINHA UM CARA DE CEM QUILOS MONTADO NELE. TINHA UM PAU ENTRANDO NAQUELE LIXO TODO. – foda-se a minha sanidade.
- Isso não nos serve de nada agora.
- É.
- Você sabe o que vai acontecer, não sabe?
- O que vai acontecer depende do que será feito daqui pra frente.
- E depois disso?
- Depois disso o quê?
- Depois de tudo o que faremos daqui pra frente.
- Faremos? Eu sei o que eu farei, e quem quiser sobreviver que me acompanhe.
Ninguém demonstrou qualquer reação. Desci do carro e fui conferir nossas visitas indesejáveis.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Machos e suas machisses.

Encostado na parede pixada do bar, ele cruzava os braços e esticava as pernas, na tentativa de valorizar a pouca bagagem que carregava. Um charuto vagabundo pendia no lado direito dos seus lábios e um copo de bebida era esquentado pelas suas mãos. Estava lá há mais ou menos duas horas, praticamente imóvel, só trocando a perna de apoio, vez ou outra. A única parte de seu corpo que desobedecia à tendência eram seus olhos, inquietos e irritantes. Rabos incríveis, peitos extraordinários e pernas deliciosas eram sugados ate à última gota por aqueles olhos secos. Arrotou, peidou e coçou o saco. Tudo de uma vez só. Uma loiraça de um metro e oitenta e vestido preto colado virou a esquina, do alto de um salto alto tipo agulha. Parou tudo o que estava fazendo e começou a pensar no que falaria para a gostosa. Aquela era do tipo que merecia uma punheta e, inclusive, umas palavras.
- E aí, posso entrar?
A loira parou, fitou-o de cima abaixo, e respondeu.
- Entrar? Tá maluco? Entrar aonde?
O cafajeste riu, era a pergunta que ele queria.
- Em você, sua gostosa. Quero entrar todo em você.
- Entrar em mim? Como assim? Tipo quando você chega em casa e abre a porta? Ai, não tô entendendo. - o tipo fazia jus aos cabelos.
- Ó, vou ver se você entende. Esse sou eu - disse , esticando o indicador esquerdo - e essa é você - completou, unindo o indicador direito ao polegar direito -. Sacou?
- Mas por que eu sou a bolinha? Você tá me chamando de gorda? - perguntou, preocupada, auto-analisando suas curvas deliciosas.
- Não, caralho! Essa é a sua boceta.
- Boceta? A minha? Mas ela não é assim.
- Tanto faz. Eu tô pôco me fodendo para como é a sua boceta. Eu só quero meter nela.
- Meter nela? Você? Mas por que você não disse antes?
O machão não respondeu.
- Olha, isso eu não sei se posso prometer. Mas por que você não me paga uma bebida e a gente vê no que dá, gostosão?
- Ver no que dá? A única coisa que vai dar alguma coisa hoje é você, sua puta.
A loiraça riu, recebeu um tapa na lomba e foi acompanhando o homem bar adentro.

Aquele era o seu dia de sorte. Nunca uma mulher veio assim, tão gostosa e tão fácil. Cruzou o bar inteiro propositalmente, exibindo seu troféu amarelo. Puxou uma cadeira, ela também. Mandou descer duas garrafas da melhor cerveja da casa, o que não significava muita coisa. Fez seu melhor e mais conquistador olhar. Ouviu o telefone tocar. Era sua mulher.
- A-A-Alô, Amorzinho? É você? O-Oi, minha Vida!
Uma voz feminina e furiosa escapava do celular.
- Eu sei! Eu sei que tá tarde. É tudo culpa minha. Pelo amor de deus, me perdoa, minha Deusa! Não, meu Chêro! Não diz isso! Eu tô indo agora. Eu juro. Juro por tudo o que é mais sagrado. E só pra compensar meu atraso, hoje tem... Adivinha... Massagens nos seus pezinhos lindos!

Nesse momento, o homem lançou uma imitação de bebê que só foi melhor que sua tentativa de portar-se como um macho de verdade. Deixou dinheiro o suficiente para mais umas três doses em cima da mesa, desculpou-se, beijou a loira no rosto e saiu disparado, deixando suas bolas na parede pixada do bar.

sábado, 31 de outubro de 2009

Wake up call.

Cabeça baixa. Andava sossegado. Divertia-se chutando uma velha lata de cerveja pra lá e pra cá. Era só mais um dia na megalópole. Salário baixo, emprego inútil, casa vazia. Ergueu os olhos e admirou por alguns instantes as pessoas realmente felizes. Frações de segundo onde ele decidia mudar de vida. Aquela era a trigésima nona mudança do dia. Daquela volta pra casa. Mas estava tudo bem. A vida seguia, o ano estava só começando, e ele estava vivo. O metrô passava embaixo dos seus pés, fazendo seu corpo tremer levemente. Não sabia bem por que, mas aquilo sempre o fazia refletir sobre a imensidão, o universo, o preto. Essa porra toda. Como sempre, ignorou seus pensamentos e seguiu adiante.
Cinquenta metros à frente, um homem lhe ofereceu a bíblia. Recusou. Vinte metros à frente, um velho lhe ofereceu cocaína. Recusou. Cinco metros à frente, uma mulher lhe ofereceu o corpo. Também recusou. A vida não precisa de mudanças, quando essas não são bem-vindas. Finalmente chegou ao portão de casa. Tateou o bolso em busca das chaves e, enquanto o fazia, olhou para trás. Subitamente, parou a procura. Estava perturbado. As pupílas dilatadas e a boca seca. Esperou alguns minutos e seguiu seu caminho, deixando para trás a gravata de vigia e suas chaves. Dessa vez, o caminho seria diferente. Sem destino. E refletido em suas chaves, o brilho repetido das luzes de natal que enfeitavam a casa do vizinho da frente.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Vocação.

Era mês de junho, comecinho do inverno. Com onze anos recém completados, cabelinho arrumado e gravata borboleta, desceu as escadas e cumprimentou os parentes. Depois de umas tias gordas e uns primos valentões, foi deleitar-se nos presentes. Roupas, roupas, roupas, um peixinho daqueles que dão de graça em feira de animais. Já podia sentir seu coração se partindo, diante de tantas decepções. Porém, depois de todo esse lixo, veio o luxo. Lá no fundo, quase esquecida, uma câmera novinha. Preta, 35 mm, lentes extras. Tudo o que tinha direito.
Olhou furtivamente para os lados. Uma das tias pegava uns salgadinhos e colocava na bolsa. Os tios falavam de futebol e tomavam vodka, trazida sem o consentimento da mãe, que por sinal, não saia da cozinha. O pai, que tinha acabado de acordar, já roncava novamente na velha poltrona carcomida. A barra estava limpa. Vestiu o casaco, passou a câmera no pescoço, abriu a porta e saiu. Nevava lá fora, pra variar. Nem quando ganhou a edição limitada do Senhor Furacão Fúria sentiu-se animado dessa maneira.
Fotografava tudo o que via pela frente. Neve, plantas, bichos, carros, asfalto, pessoas, chapéus. Tudo era banal e, ao mesmo tempo, lindo. Um dia ele sentiria falta daquela ingenuidade toda, mas ainda não sabia disso. Tentava focar em uma janela até que, no meio daquela diversão sem fim normalmente definida como cotidiano, parou por um instante. Baixou a câmera, lentamente. Estava nervoso, com medo. Nossa, e agora? E se alguém me ver aqui parado?, questionava-se, sem se mover. Seus pés estavam congelados, mas não pelo frio, e sim por uma ordem vinda diretamente do seu cérebro. Aquela cena pedia mais que um clique.
Subiu a câmera ao alcance dos olhos. Mirou bem, calculou cada instante milimetricamente. Era como se ele fosse um profissional, como se soubesse exatamente o que estava fazendo, sem saber que aquele era só seu instinto se manifestando. Pronto. Os ajustes estavam perfeitos. Naquele instante, sua lente era seu globo ocular. Clicou. Clicou novamente. Clicou mais uma vez. Abriu um largo sorriso. Uau, que mulher é essa?!, disse baixinho, antes de clicar mais umas três vezes. Dia de sorte. Jovem daquele jeito, já sabia o que queria ser quando crescer: voyeur.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Diálogo #2 - Terceiro grau.

Homem de meia-idade, solteirão e do tipo largado, acorda no meio da madrugada com uma luz verde no quintal. De imediato, veste um roupão de listras vermelhas e corre para conferir. Ao abrir a porta de vidro, depara-se com um alienígena tirando os trajes espaciais para dar um mergulho na piscina.
- CREIO EM DEUS PAI! O QUE É ISSO?! - berrou o tiozinho, com um pulo pra trás.
- Xindschnaus Milaus Drenaus. - respondeu o ET, estendendo a mão de sete dedos finos e azuis.
- Meu, o que que você tá falando?
- Olá!
- Olá?
- É! Olá! Foi mal, é que eu esqueci de ligar o tradutor.
- Tradutor? Mas você tá pelado, cara!
- É embutido.
- Embutido? Mas entra por onde?
- Velho, na moral, você tá fazendo perguntas demais, não acha?
- Perguntas demais? Eu? Tem certeza? ALÔ?! TEM ALGUÉM AÍ?!
- Já que é pra ficar nessa de perguntar: você não vai me oferecer uma cerveja ou algo do tipo?
- Não! Claro que não! Você chega assim, com essa... essa... Isso aí é uma rôla?
- Ah! Vai arranjar o que fazer. Puta cara chato.

Irritado, o alienígena sobe seus trajes espaciais e entra sem qualquer cerimônia, esbarrando propositalmente no ombro do tiozinho, que, antes de entrar, fica parado, por uns segundos fazendo medidas imaginárias com as mãos ao mesmo tempo em que olha para as partes baixas.
- Então, onde é que fica a parte boa dessa casa? - o amigo espacial questiona.
- Você quis dizer cachaça? Fica aí à sua direita, nesse armário com a porta quebrada.
- Hummm... Achei! Mas, porra, Velho Barreiro? Não tem algo de qualidade aí?
- Não, só Velho Barreiro. Homem que é homem bebe Velho Barreiro.
- Eu não sou homem, esqueceu?
- Esquecer eu não esqueci, mas até agora eu não sei quem ou o que você é.
- Puxa uma cadeira aí que eu explico.

O tiozinho obedeceu e sentou-se de frente com o ET. Uma dose de cachaça foi servida, fizeram um brinde e mandaram numa talagada só. Outra dose foi servida e repousou nos copos enquanto a conversa se desenrolava.
- Então, o que você quer saber?
- Pra começar, qual é seu nome?
- Lá no meu planeta é Alundrabumbalumba. O equivalente a João por essas bandas.
- João?! É o meu nome! Mas, vem aqui, xará, que porra de planeta é esse?
- É um planetinha que fica um pouco depois do sol, chama-se Othac Arp Ohlarac.
- E o que você quer aqui, mais especificamente na minha piscina, com a rôla de fora? Aquilo era uma rôla, né?
- Sei lá. Eu só queria me divertir um pouco. Não tem nada pra fazer lá onde eu moro. Não tem mulher, não tem cachaça, não tem guerra, nem futebol. E eu não comento sobre minha rôla.

João, o alienígena, manda outro copo de Velho Barreiro pra dentro. João, o ser humano, acompanha.
- Cara, desculpe dizer, mas você fez merda. As coisas legais acontecem lá nos Estados Unidos.
- Estados Unidos o caralho. Já tá batido. Tô fora de viajar três bilhões de quilômetros pra encontrar meus conterrâneos. Eu quero conhecer gente nova.
- Mas, cara, aqui não tem porra nenhuma pra fazer.
- Como não? Tem cachaça e tem você.
- E daí? Só isso, mais nada.
- Na moral, alguém precisa de algo mais?
- Como assim?
- Cachaça e amigos, velho. Só isso basta.
- E-E-E-Eu? Seu amigo? É mesmo?
- Claro! Você é foda pra caralho, cara!
- Você também é foda! Você é foda demais! Eu te amo, cara!
- Eu também te amo! Dá cá um abraço!

Os dois mandam outra dose e se abraçam calorosamente, com tapinhas nas costas.
- Ei, mas pera aí. Não é nada contra você, amigo humano, mas falta uma coisa.
- O quê? Amendoim?
- Não, cara!
- Batata frita?
- Não! Faltam peitos! Muitos peitos! Peitos grandes!
- Ahhhh, isso eu tenho aos montes. Dá um pulo ali na geladeira.
- Na geladeira? Vocês humanos fabricam peitos?
- Bem, fabricamos, de certa forma. Eu explico depois. Mas eu não quis dizer dentro da geladeira, e sim fora.
- Esses papeizinhos aqui?
- É! Aí mesmo! É só você escolher.
- Hummm, deixa eu ver. Mimosa, peitos durinhos, bunda mais ainda, valor a negociar, Tá se achando demais, não quero. Sheila, ninfetinha com corpo de mulher, faço tudo, R$50,00 completo, Parece bacana, que cê acha?
- O preço tá bom. Ela costumava cobrar mais caro. Você tem alguma grana aí?
- Minha moeda não vale aqui, bro.
- Pior que é. Tá bom, vai. Pode chamar que eu banco essa.

O alienígena pegou o celular com uma mão, o papelzinho da Sheila com a outra, o copo de Velho Barreiro com outra e apontou para o tiozão com a outra. Era como se eles se conhecessem a tempo.
- Cara, acho que esse é o começo de uma grande amizade.
- Ou, no mínimo, de uma grande foda. A Sheilinha arregaça.
- À nossa!
- À nossa!

Homenagearam os mortos. João deixou cair um pouco de cachaça no chão, enquanto o outro João jogou um pouco de cachaça pro ar. Mandaram a última dose daquela garrafa pra dentro e já pegaram outra no armário. Aquela seria uma longa e esquisita noite.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Diálogo #1 - Sargeta.

Fim de tarde em São Paulo, o termômetro marca vinte e três graus, mas oscila de vez em quando. Na esquina de uma das ruas mais movimentadas da cidade, um engravatado encontra um mendigo encostado numa parede. Na parede lê-se É NÓIZ. O mendigo tem um cheiro de carniça dos brabos, talvez oriundo do cabelo duro e da camiseta Suvinil do Corinthians. O oposto do engravatado, que, orgulhoso, veste um terno Armani e uma gravata de seda vermelha que, assim como o sapato de couro preto, vem da Itália. O sujismundo no chão estende a mão.
- Um trocado? - pergunta, humilde, o mendigo.
- Um trocado?! UM TROCADO?!
- É, broder. Um trocado. Por que não?
- Escuta aqui, "boroder", você sabe o quanto eu trabalhei pra ganhar esse tal trocado?
- Hummmm, xô pensar...
- Xô pensar o caralho! XÔVER A PUTA QUE TE PARIU! Por que você não levanta essa porra desse seu rabo dessa porra dessa calçada e vai procurar um empre-
- Avaliando que, mesmo com mais de cinco anos, seu sapato ainda brilha como novo e o seu terno, no fim do expediente, ainda não demonstra o menor sinal de trabalho. Que a única coisa um pouco fora do lugar são os seus cabelos e que o seu vocabulário é a mistura de uma criança da segunda série com um aviãozinho de Pirituba, posso concluir que você é o chefe, o manda-desmanda, o filho da puta.
- Olha a.... Ma-ma...
- Calma, meu amigo, eu não terminei. Só pra fechar, você ainda enfeita a testa da mulher, dando uma fodida na secretária. E por sinal, a sua mulher, aquela gorda, é a filha do presidente que, gentilmente e nepotismamente, lhe deu este emprego.
- Filho de uma vagabunda, eu vou enfiar meu pé no seu-
- Acertei, não é?
- Éééé... Bem... É que... Sa...
- Olha, eu adoraria ficar aqui, trocando uma ideia, mas eu tenho que trabalhar, cara. Então, vou repetir a pergunta: Acertei, não é?
- Acertô.
- Ok, muitíssimo obrigado, meu chapa. E então?
- E então o quê?
- Um trocado?

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Paraíso.

Corria desesperadamente há uns bons minutos. E, na mesma velocidade dos seus pés, pensamentos rasgavam sua mente. Quando isso vai parar? Pra que continuar fugindo? Olhou para o céu e enxergou o azul transformar-se num laranja perturbador, para logo em seguida voltar a ser azul novamente. Ao menos as duas luas negras ainda estavam lá. Respirou aliviado com o pouco de fôlego que ainda restava em seus pulmões e voltou seus olhos em direção ao horizonte, logo após as árvores que choram. Ouviu o urro de uma besta. Apertou o passo. O desespero era tanto que nem parou para olhar os corvos que se alimentavam dos olhos de um cadáver ainda fresco. Mesmo aquela sendo uma cena corriqueira, merecia uma espiada. Afinal, são olhos. Olhos e corvos. A intensidade dos urros aumentou. Raios explodiam aos seus pés. Nada o faria parar. Passou pela velha pirâmide que, outrora, serviu de abrigo para alguma divindade com fetiche por pés. De fato, a tribo dessas bandas sempre foi muito estranha. Sentiu um hálito podre invadir o ar. Seria aquele odor nativo dos esgotos do inferno? Que nada. Todo mundo já sabia que o inferno era nada mais, nada menos, que um puteiro. O demônio em pessoa assumiu isso no programa da Oprah. Aquele cafetão. Lembrar do demônio sempre o fizera rir, mas não dessa vez. Justamente quando ensaiava um sorriso preguiçoso olhou pra trás e, sabe-se lá como, deu de cara com a besta, sedenta por crânios. Dez metros de altura. A cabeça de leão, o corpo de cavalo, os pés de elefante, os tentáculos de kraken e os dentes de tubarão. Uma imensidão negra envolveu-o completamente. Seu corpo estremeceu só em pensar que aquela era a sombra da sua pata. Uma das seis patas. Deu adeus aquele mundo amaldiçoado e acordou. Caralho, sussurrou no sofá estampado da casa dos pais. A agulha ainda estava picada na veia.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Rotina.

Todo santo dia era a mesma coisa. Acordava junto com o sol, tomava uma bela xícara de café com leite e melecava-se com meio pão velho e uma pitada de manteiga. Depois era só vestir as velhas botas, o chapéu de boiadeiro, pegar sua maleta e por o pé na estrada, em direção à labuta. E da mesma forma que seu despertar, seus dias desenrolavam-se sem novidade nenhuma. Honestamente, qualquer escritor precisaria ter a loucura como pré-requisito para querer contar a história daquele homem tão desinteressante e, ainda asism, tão rejeitado.
Sim, rejeitado. Era só ele dobrar a esquina do boteco sustentado à base de cachaça e entrar definitivamente no velho e deteriorado centro da cidade que os olhares e humilhações começavam. Quem via de longe achava esquisito. Um senhor com mais ou menos sessenta e dois anos causar tanta repulsa assim. Pela padaria ele passou batido, o episódio da cusparada na cara ainda era fresco em sua memória. Na loja de bijuteria ele arriscou se encostar na parede e, até mesmo, botar sua velha maleta no chão. Mas antes que ele ousasse abri-la, a velha gorda toda coberta de ouro vagabundo corria em sua direção, com a mão espalmada. Pé na tábua, meu senhor.
Ótimo, agora sim, pensava ele. A primeira rejeição indicava o começo do seu dia. Acelerou um pouco o passo. Olhava atentamente ao redor, segurando sua mala com certa fixação. Vagabundos, sanguessugas, desprovidos de qualquer capacidade mental!, resmungava baixinho, evitando maiores confusões. Depois de uma quadra, olhou pelo vidro da pizzaria. Aparentemente, a barra estava limpa. Encostou-se na parede, colocou a camisa para dentro da calça e a maleta no chão. Levou a mão até ela, com o claro objetivo de destrancá-la. Não deu tempo.
- Ô, pá! Vá te a merda, gajo! - esperneava o português de dois metros, dono da pizzaria.
- Vá te a merda você, imigrante de merda, usurpador das maravilhas que só nosso país a de prover. Violentador de índias. Profano! PROFANO! - respondeu o velho mal visto.
- É louco! O senhor é louco! Toda semana aguentá-lo em minha propriedade, ô pá! Suma! Vá te daqui! Vá te pra longe!

Não adiantava discutir e o menor sinal de aglomeração espantou o velho dali. Segurou a maleta junto ao peito e andou sem rumo, apreensivo. O ritual se repetia, até que houve uma interrupção. Uma criança de mais ou menos seis anos estava distraída, o velho também. O choque foi forte. Ambos caíram pra trás. O chapéu voou para o meio da rua. O Comandos em Ação para perto do ralo. E a maleta, meu Deus, a maleta aterrisou ao lado da criança. Aberta.
- FECHE OS OLHOS, PEQUENO ESPIÃO! VOCÊ FEZ DE PROPÓSITO, NÃO FOI?! VOCÊ É UMA PRAGA. EU QUERO RIR EM CIMA DO SEU CAIXÃO. - disse o senhor, correndo em direção à maleta.

Ninguém mais achava aquilo normal. Aquele velho já estava passando dos limites. A criança com a bunda suja saiu correndo para os braços da sua mãe, que coincidentemente era cunhada da gorda da loja de bijuteria, que estava bem do lado do chinês da pastelaria, que fica bem ao lado da padaria do italiano, que é um grande amigo do português da pizzaria, que é casado com a irmã do árabe da sapataria. E o pior de tudo é que eles eram só um terço da multidão que formava um círculo ao seu redor. Exatamente naquele momento, ele sentiu o peso do mundo em suas costas. Ninguém falava nada, mas cada olhar, cada dedo estendido era uma bala que atravessava seu coração já cansado.
De repente, alguém gritou lá do meio PEGA O FILHO DA PUTA!. Pronto, foi o estopim para o círculo se fechar. Enquanto a manada de homo sapiens aproximava-se com passos ritmados, o velho segurava sua pasta com força descomunal. Apertava-a com tanta força que o couro já velho começava a descascar em suas mãos. Eles estavam cada vez mais pertos. Um tênis voou, acertando-o bem na face esquerda. Mais uma vez, foi ao chão. Fechou os olhos e, apesar da idade, colocou-se em posição fetal, abraçando a maleta com um aspecto maternal. O amargo gosto da ironia.
Não havia mais escapatória. O fim da vida do velho chegara dois anos mais cedo. Ele só precisava acostumar-se com a ideia, nos poucos segundos que lhe restavam. Então ouviu-se um som. Pareciam sinos, pareciam harpas divinamente angelicais, mas eram sirenes. A multidão enfurecida começou a dispersar-se, com semblante inocente. O amargo gosto da falsidade. Os carros pararam e os guardas vieram. O negro pegou o velho no chão, o branco pegou a maleta. Erro de principiante.
O velho começou a enfurecer-se, mesmo recém despertado de uma experiência com a morte. Não teve papo. Uma paulada na nuca e seu corpo amoleceu, direto para o camburão, no banco de trás. No banco da frente, os guardas buscavam uma maneira de abrir a maleta. Depois da terceira tentativa, conseguiram. Lá dentro, jaziam dezenas de livros. Na capa, acompanhando uma foto do senhor, jaziam as seguintes palavras, em fontes garrafais: Histórias Já Velhas. Surpreso, o policial branco virou-se para o negro.
- Tem que ser louco para querer contar a história desse velho fracassado.
E do banco de trás, ouviu-se:
- Prazer, louco.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

RSS.


Clicava, clicava, clicava e nada satisfazia seus desejos. Passeou pelo Google, quase que inspirado por Chapéuzinho Vermelho e sua floresta. Chegou até a se perder, antes de descobrir que havia pulado a página trinta e sete. Nada era capaz de dar uma nova cara àquela noite abafada de terça-feira. Entretanto, quando ele já olhava para a cama de uma maneira diferente, deparou-se com aquilo que tanto buscara. Seu tesouro supremo. Sentiu um calafrio percorrer a espinha, para segundos depois ver o calafrio se transformar em sorriso. Para se transformar em alegria. Para se transformar em excitação. Deixou escapar um É isso que eu queria e, sem titubear, assinou a RSS. O garoto era esperto. O blog mais ainda.

Se você se sentiu como nosso amigo anônimo acima, assine o RSS do blog. É só clicar no RSSzão no começo do texto ou no link direto, lá no topo. Honestamente, eu o faria se fosse você.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Um retrato.

Nunca teve como objetivo esconder a velhice. Deixava bem à mostra as manchas no rosto, a falha no topo da cabeça, as verrugas e, com certeza, o ar rabugento ao redor dos olhos. Carregava cada uma delas com um certo orgulho. Seu semblante cansado, cheio de histórias para contar, era sua verdadeira obra-prima. A que mais deu trabalho, pelo menos. E lá, da benção da velhice, enquanto, para alguns, ele já estava no lucro, ele se permitiu. Permitiu encontrar inspiração na simplicidade, no mundano. Não viverá o que imaginou ao ver aquele cenário. Felizmente. Olhou para o chão e enxergou-o vermelho, pintado de sangue. Não vermelho sangue. Sangue plebeu. O crânio aberto, o cérebo fora do habitat natural. A pilha de corpos. Um amontoado de incompreenssão. Levantou a cabeça e teve diante de si o olhar estarrecido dos futuros cadáveres. A palma que cobria o rosto. Os braços que clamavam por Deus. Os punhos que, por um último instante, insistiam em permanecer cerrados. Sentiu um aperto no peito, o fôlego desaparecendo. Num impulso, levou as mãos ao coração. Deixou o caderno cair. Com um pouco de sacrifício, ajoelhou-se para pegá-lo. As mãos trêmulas, as pernas fracas. Ainda no chão, olhou para cima e, definitivamente, viu seu bem-estar ir embora. Caiu duro, com o caderno rabiscado ao lado. Nos olhos, a imagem fixa das baionetas. Os chapéus para esconder os chifres. Os uniformes azuis para esconder a pele manchada de sangue. A nobreza assassina. Dois minutos depois, sentiu a humanidade voltar ao ambiente. Agora sim, poderia levantar-se. Dor nos joelhos. Dor nas costas. Dor na cabeça. Ensaiou uma reclamação qualquer e lembrou-se: antes a dor que a morte. Calou-se. Caderno nas mãos. Pé ante pé. Saiu dali. Seis anos depois, o resultado daquele três de maio.

El Tres de Mayo de 1808, Francisco de Goya

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Conto verídico.

Ele acordou e dirigiu-se à mesa. Cansados de esperar, todos já almoçavam. O constrangimento era palpável, facilmente pescado no ar. Ela não o recebeu com beijinhos ou palavras amorosas. Pelo contrário. Ela nem olhou no seu rosto. Seu pálido rosto. O gesto demonstou rancor, uma tentativa de desprezo e, até mesmo, um certo nojo. Nojo, não. Nojinho. O amor de um pelo outro era tão imenso que o nojo era um sentimento impossível. Seu prato, obviamente, estava vazio. Essa era uma boa desculpa para quebrar o gelo. Com toda a delicadeza que poderia expressar, pediu à ela que passasse o arroz. Como não houve resposta, decidiu pedir pelo feijão. De fato, o feijão é mais indicado para uma boa conversa. O silêncio permaneceu. Ele apelou para as batatas fritas. Qual é?! Quem é que não gosta de batatinhas?, pensava, enquanto o outro lado da mesa permanecia mudo. Desesperado, tentou a farofa, o bife, o suco e, pasmem, a salada. Doía ver que seus esforços tão simpáticos eram em vão. Largou os talheres de qualquer jeito e, indignado, levantou a voz. Eu prometo que não chego mais bêbado em casa! Agora me diz, pra que tudo isso? Como já era de se esperar, a falta de respostas foi a única resposta digna. Sem dúvidas, aquele almoço iria se estender por um bom tempo. E aos que ocupavam os outros dois lugares na mesa, restava a pergunta: Se em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, o que fazer se a briga for entre mãe e filho?

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O vício.

Tremia de frio e suava em bicas. As mãos finas simulavam os toques de uma máquina de escrever, sem uma máquina de escrever. Os pés achatados encontravam-se do lado de fora da cama, movendo-se de cima para baixo. A boca chacoalhava, balbuciando algumas palavras extraídas de algum livro de Hemingway. Era a abstinência. A maldita abstinência. O telefone tocava, mas quem recebia a mensagem era a secretária eletrônica. Um editor engravatado de uma editora pomposa oferecendo uma quantia reservada a um por cento da população mundial. Os ouvidos bloquearam. Não queriam saber de nada. Pegou o cobertor e puxou-o, cobrindo a cabeça. E num canto do quarto, uma folha de papel subitamente em branco. A maldita abstinência.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Apertamento.

Sem se mover há um bom tempo, sentia-se incomodado. Olhava ao seu redor só para constatar que não havia nada que pudesse fazer. Nem para se divertir, nem para sair dali. Sem TV, sem videogame, sem namorada. Aquela sensação de nada era tudo o que podia ter, pelo menos por enquanto. E lá, no canto, todo embrulhado, lembrou-se do seu antigo lar, se é que ele pode ser chamado assim. O lugar era um saco, mesmo compartilhado com outros inquilinos. Um bando de porra loucas, em sua imensa maioria. Tanto que, de vez em quando, eram despejados por aí. Lembrou-se, também, da briga que foi para comprar a casa onde hoje morava. De fato, aquela foi uma oportunidade única. Daquelas que surgem uma vez na vida e outra na morte. E só. Percebeu a injustiça que acabara de cometer. Estava reclamando de barriga cheia. Mas não literalmente. A fome dava sinal de vida e a única coisa que havia pra comer era uma gororoba pseudo-nutritiva um tanto quanto nojenta. Já eram meses e meses naquela situação. Escuro, silêncio, chatice, gororoba. Sentiu uma aflição percorrer seu corpo frágil. Precisava sair dali. Urgentemente. Debateu-se de um lado para o outro num claro sinal de rebeldia. Tão jovem e tão bagunceiro. De fato, conseguiu chamar a atenção. Do lado de fora, um grito prolongado rasgou a calmaria que perdurava há tanto tempo. Um grito de mulher. Um grito de mãe. Se tudo desse certo, dentro de pouco tempo ele mudaria sua vida.
Ou melhor, começaria.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O melhor conto de todos.

Onde quer que fosse, levava um bloquinho. Capa verde, umas cem folhas mais ou menos, portátil, de bolso. Fiel escudeiro. Era comum as pessoas perguntarem o que tanto ele escrevia no bloquinho. Era comum elas escutarem a mesma coisa. "Meu bloquinho alimenta minha mania", dizia. Uma mania um tanto quanto estranha, diga-se de passagem. Era fanático por rankings. De cinco, dez, quinze. Tanto faz, desde que fosse um ranking. Cervejas, bundas, times, peitos, filmes, matérias chatas, livros. Tinha de tudo um pouco no tal bloquinho, o vigésimo sétimo, até então. Os outros vinte e seis ele deixava guardado à sete chaves. Suas manias diziam respeito a ele. E somente a ele. Um dia, porém, ele quase deixa escapar o segredo. Chegou atordoado em casa e chamou pela mãe. "Ô, mãe! Mãe! Manhê! Cadê meus bloquinhos?", perguntou. "Que bloquinhos, Gilberto? O que você tá usando? Eu sabia que seus amigos eram má gente.", lamentou a mãe. Ignorou e passou batido. O alívio pelo segredo mantido veio depois, quando caiu em si. Ele sabia bem onde estava o bloquinho, mas estava atordoado. Os olhos meio murchos, a bochecha meio caída, assim como sua auto-estima. Entrou no próprio quarto sem bater. Abriu a gaveta e começou a procurar. Bloquinho quatro. Bloquinho treze. Bloquinho vinte e um. Bloquinho um. Finalmente, o bloquinho um! Levantou a capa verde e encontrou o ranking que queria. O mais importante de todos. Digno da primeira página do primeiro bloquinho. "O pior dia de todos" estava escrito. Pegou a caneta vermelha e preencheu o único espaço em branco da página. Primeiro lugar.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

F5.

Os olhos nervosos. A boca seca. As sobrancelhas impacientes. Mesmo imóvel na cadeira reclinável, ele nunca estivera tão agitado. Girava de um lado para o outro. Tomava latas e latas de Coca-cola, uma atrás da outra. E, com os dedos, brincava com seu umbigo quase encoberto pela barriga desproporcional ao resto do corpo (com a exceção do queixo duplo). De fato, era um homem nojento. De fato, seria virgem até sua morte, por infarto, aos quarenta e dois anos. Pegou seu boneco do R2-D2, intacto, ainda dentro da caixa. "O que acontece? Por que nada acontece? O que eu faço da vida agora?", cochichava ele. O robô não dizia nada. Nem o robô gostava dele. Pelo menos não na vida real. "RESPONDE ALGUMA COISA! EU PAGUEI CARO POR VOCÊ! EU VENDI MEU RIM POR VOCÊ!", do cochicho foi para os berros, numa fração de segundos. O simpático robozinho permanecia quieto. O silêncio não era culpa dele, mas sim da mente doentia do gordão. A caixa foi completamente rasgada, num ato irracional. "NÃÃÃÃÃÃÃO! O QUE FOI QUE EU FIZ?!", vociferou o rolha de poço, com os braços curtos estendidos para o céu. Aquilo não se fazia. Todo seu prestígio na comunidade de colecionadores estava espalhado pelo quarto, lado a lado com as ratazanas. Definitivamente, sua vida não fazia mais sentido. Tentou o F5 mais uma vez antes de se atirar pela janela. Na tela do computador, um animal muito parecido com ele era carregado por uns passarinhos cor-de-laranja. Twitter is over capacity.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O ladrão de paciência.

Pegou o telefone e discou o número que queria. Fazia um sol delicioso lá fora. O céu ostentava um azul poucas vezes visto por aquelas bandas. Do quarto, dava pra ouvir a mulecada jogar bola. "PASSA! LADRÃO! FILHO DA PUTA, JOGA NADA!", gritavam. "Essa criançada de hoje em dia não tem mais educação mesmo", pensou o senhorzinho. Apesar disso tudo, ele não se exaltava. Era paciente que só ele. Só ele.
Terminou de discar. O telefone chamou. Chamou. E chamou de novo. Finalmente uma gravação atendeu. Dizia uma série de coordenadas, enumeradas de um a nove. Pro azar do senhorzinho, a que ele precisava era a nona. Apertou o número nove. "Ah, diabos!", exclamou. Mais uma vez a gravação dizia uma série de coordenadas. Nenhuma correspondia à dúvida dele. Teclou um número qualquer, a gravação respondeu: "No momento todos os nossos atendentes estão ocupados. Previsão de atendimento em quatro minutos". Fazer o quê? Esperou pacientemente, forçando um sorriso de canto de lábio.
Passaram-se seis minutos e alguém do outro lado atendeu. Finalmente um ser humano! O senhorzinho começou a explicar sua dúvida. No meio, foi interrompido pela atendente.
- Senhor, aqui não podemos resolver seu problema, senhor.
O senhor respirou e prosseguiu.
- Ó, Deus. Onde eu posso resolver isso?
- Estarei transferindo o senhor para a assistência técnica, senhor. O senhor pode estar aguardando?
- Claro, minha boa moça.

A gravação voltou, anunciando um tempo de espera de oito minutos. Oito minutos! Mas, tudo bem. O sol brilha lá fora e a criançada segue batendo bola. "ENFIA A BOLA NO CU, GOLEIRO FILHO DE UMA VAGARANHA!", continuavam a espernear os pimpolhos. O senhorzinho ficou embasbacado, mas ainda assim curioso para descobrir o significado da maioria daqueles palavrões, especialmente "vagaranha".
A musiquinha começava a dar nos nervos. Era uma mistura de notas aleatórias. Sol, sol, mi, fá, lá, lá, lá, sol. Pelo menos era assim que ele entendia. Olhou no relógio. Dez minutos haviam se passado. Começou a mexer a perna insistentemente. Aquilo era um claro sinal de nervosismo. Ou ansiosidade, o que era mais provável.
Finalmente, alguma alma caridosa no call center atendeu à chamada daqueles pacientes cabelos brancos. A voz dela era doce, suave, transmitia prestatividade. "Nossa, essa moça deve ser muito bela", pensou sozinho. A conversa se desenrolava tranquilamente, até que as coisas começaram a mudar.
- Senhor, vou precisar confirmar alguns dados seus.
- Claro, senhorita. Posso chamá-la assim?
- Não. CPF, RG, carteira de trabalho, número do cartão de crédito e endereço.
O senhor confirmou tudo, um por um, perdido em uma pilha de documentos.
- Obrigado pela atenção, senhor. Eu estou vendo aqui que você está sem sinal de TV a cabo.
- É! Logo hoje, que tem um filmão no canal das antiguidades. É com o James Dean!
- Já verificou se o aparelho está ligado na tomada? Se o cartão está inserido corretamente?
- Claro! Foi a primeira coisa que eu verifiquei.
- Senhor, já detectamos o problema. Você vai ter que fazer o seguin...
"No momento todos os nossos atendentes estão ocupados. Previsão de atendimento em quinze minutos", cortou a voz robótica.

A decepção tomou conta do olhar cansado do senhorzinho. Ele abriu a boca e um fio de baba escorreu, sem querer. A mão amoleceu e o telefone ameaçou cair. Só ameaçou. Puxou todo o ar que encontrou nos pulmões. Tranquilamente, colocou o telefone no gancho.
FIIIILHA DE UMA VAGA... foi possível ouvir do lado de fora, antes que os gritos fossem abafados pelo travesseiro. A mulecada entrou correndo. Uma chuva estava se aproximando, furiosa.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Eureka!

Sentado embaixo da árvore, na sombra acolhedora das folhas e galhos, tinha uma caneta na mão, um caderno no colo e nenhuma ideia na cabeça. Nem aquele lugar brilhante, fonte de inspiração de gênios como Newton e suas maçãs adiantara. O branco do papel era tão forte, mas tão forte, que seus olhos ardiam. E seu coração apertava. "Poxa vida, eu sempre fui o cara das ideias", pensava o jovem rapaz de cabelos amarelos e olhos de jabuticaba. Girava a caneta como um rockstar e suas baquetas. Mordia a tampa como uma criança e sua prova de matemática. Não se reconhecia. Nem se aceitava. Também pudera, estava lá há mais de duas horas e as coisas insistiam em manter-se iguais: um grande e sufocante nada. Tentou assobiar sua música preferida do Beethoven. Tentou, inclusive, reproduzir as melhores frases do Marlon Brando. Não adiantou foi nada. Estava pra desistir. Jogar a toalha. Quando veio o estalo. "Toalhas auto-secáveis! É claro, porra"! Aquele era seu primeiro palavrão em meses. Num pulo só, levantou-se. Dava pra perceber uma lágrima de felicidade escorrer do seu globo ocular esquerdo. Depois de umas cambalhotas e uns beijos distrubuídos aleatoriamente, voltou ao seu lugar. Caderno no colo, caneta na mão. "Agora só falta fazer funcionar", disse pra si mesmo. É. De volta pra prancheta, camarada.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Coisa de criança.

"Acorda! Corre! Me ajuda! Fogo!", ouviu sua mãe gritar lá do quarto, a duas paredes de distância. Levantou de súbito, apavorado. Na cabecinha, a falta de opções diante da situação. No coraçãozinho, o nervosismo incontrolável diante do calor violento que amolecia o papel de parede. Pegou seu ursinho e desceu escada abaixo. Deixou pra trás os gritos abafados da mãe, ainda lacrada onde outrora repousava tranquilamente. Mas, tinha que ser assim. O fogo não pergunta se você tá bem, nem se pode chegar pra bater um papo. Ele simplesmente vem. Desesperado, correu até o quintal e pegou a maior mangueira que viu. Ela ultrapassava seu tamanho facilmente e, com um pouco de esforço, também o peso. Mas, mesmo assim, o pequeno gigante carregou-a com suavidade, escada acima. Agora, sim. Era a hora da verdade. Ele e o fogo, o fogo e ele. De repente, sentia-se um hominho. Mirou firme, bem no foco do fogaréu. Após uns segundinhos, só sobrou ele, vencedor. Peito estufado, respiração ofegante. "Filho?! Filho?! Você tá aí? Acorda!", disse sua mãe, ainda nervosa. Finalmente, o pesadelo havia acabado. Levantou de súbito. Sua mãe batia na porta. Olhou para baixo, decepcionado. Ah, não. De novo, não!

Realidade impiedosa.

Saiu sem avisar a patroa. Foi só buscar o pão. Coisa rápida. "Se pá, ela nem sente a minha falta", pensou o pretinho. Cresceu rápido. Amadureceu da noite pro dia. Muleque das entregas aos oito, soldado aos doze, pai aos dezeseis. Veste o chinelo. Abre a porta do barraco e sai. Três passos e o chinelo arrebenta. Volta um pouco e deixa ele cair na porta de casa. Não podia se dar ao luxo de desperdiçar aquele pedaço de plástico, aquele pedaço de si mesmo. Pé no chão, do mesmo jeito que passou a infância interrompida. Anda doze metros e encontra seu destino. Nove milímetros, no meio da testa. Olhos abertos. Sangue. Horror. Saudade. Uma vida chega ao fim quase tão rápida quanto essa história. Mais uma.

Parágrafo inspirado pelas rimas talentosas do: www.myspace.com/emicida

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O machão.

Ao nascer da madrugada, Golias caminhava sozinho pela calçada. Cabeça baixa para enxergar os obstáculos escondidos pela escuridão e, principalmente, disfarçar o medo subumano que subia da espinha até o lado direito do cérebro. Ferramenta pouco utilizada, até então. Sempre foi um homem grande, digno do nome. Na escola, era o valentão. No trabalho, o pau pra toda obra. Comumente esbanjava virilidade, analisando seus músculos com precisão cirúrgica. Os espelhos eram sua perdição e a fita métrica a sua droga, condição reconhecida pelo próprio Golias. Lembrou-se disso ao avistar um folheto de curso superior largado pela calçada. E, ali, pensou com seus bíceps: "Pra que cérebro se eu tenho esse aqui, que é irmão desse aqui, que é irmão desse aqui?", ao mesmo tempo em que se socava, em homenagem aos nossos ancestrais. Para o seu azar, esse instante de distração foi o suficiente para um desnível levá-lo ao chão. Cem quilos de músculos, estatelados na calçada. Sentiu uma dor lancinante no braço esquerdo. Ergueu os olhos. Viu o osso saltado para fora da pele. Pela segunda vez no dia, pensou. "Ué, mas os ossos não ficam dentro da gente"? Constatação genial. Só assim percebeu o quão errado as coisas estavam. Sentiu a garganta apertar. Segurou o choro com toda sua força e, com um pouco de esforço, pôs-se em pé. E justamente quando nada podia piorar, sentiu um pingo na testa. Levantou a cabeça e observou que um dilúvio aproximava-se. Segurando o braço esquerdo na mão, correu em busca de abrigo. Naquele fim de mundo, o único teto era o de uma casa velha, caindo aos pedaços, aparentemente saída direto de um filme noir de pouco orçamento. Chutou o portão abaixo e correu. A chuva começava a cair, furiosa. Meteu a mão na maçaneta. A esquerda. Gritou de dor. Três segundos depois, recomposto e com a mão certa, abriu a porta. Procurou pelo interruptor e acendeu a luz. Recuperou o fôlego e gritou por alguém. Nada. Nenhuma alma viva. "Que sorte a minha", exclamou, acompanhado pelo eco. Foi fechar a porta e deu de cara com ela. "É só o vento", pensou. Pensara pela terceira vez no dia, algo raro para Golias. Virou de costas. Deu um passo. Dois. Três. Quatro. As luzes apagaram-se subitamente. Ameaçou pensar em alguma coisa, mas sua cota do dia já havia extrapolado. O silêncio da chuva lá fora foi rasgado por um grito desesperador. Golias virou história, contada por alguém com cérebro, ao invés de músculos.

Virando hominho.

A terceira série era barra pesada. E ele sabia bem disso. Não é pra menos. Ela ficava bem no meio. Aluno de terceira série não era mais tão criança pra ser protegido pela professora. Mas também não era grande o suficiente para encarar os valentões da quarta e quinta série. Essa injustiça ficava bem clara na hora do recreio. O parquinho ficava com a primeira e segunda. A quadra com a quarta e quinta. E ái de quem ousasse mudar a ordem natural das coisas. Ciente da situação, ele assistia tudo em silêncio. Sentado no banco, com sua lancheira do Senninha, seu Toddynho, seu cabelo tigelinha e suas finas meias brancas até a canela. De vez em quando pintava alguém para trocar umas figurinhas, mas ficava só nisso. Dia após dia, a mesma cena. Dia após dia, os mesmos vinte minutos desperdiçados. Até que, num recreio aparentemente qualquer, as coisas finalmente começaram a mudar. Do seu lugar de costume, ele acompanhou a bola de futebol sair voando da quadra, até parar nos seus pés. Diante dos gritos apressados dos grandalhões, ele não teve escolha. Fechou os olhos e meteu o pé. Calculou mal. A bola pairou pelo ar em câmera lenta até a testa de um repetente da quinta. Logo o maior deles. Que azar. Seu destino estava selado: depois da aula, na saída. Não havia escapatória. Seu encontro precoce com a masculinidade já estava marcado. Durante o resto da aula, ele rezava para que o tempo parasse. Prece que não foi atendida, como o sinal fez questão de frisar. Havia chegado a hora. Roendo as unhas, caminhou trêmulo até o portão. Uma rodinha de moleques de todas as idades, e até umas meninas, já esperava por ele. O repetente estava lá no centro, estralando os dedos. Dentro do círculo, procurou por um canto para a sua mochila do Power Rangers. Não encontrou. Deixou-a cair no chão, displicentemente. Cerrou os punhos. Lembrou do Karatê Kid. O grandão deu uma risada irônica e foi pra cima. Assustado com aquela fúria toda, viu seus oito anos de vida passarem mentalmente, num só flash. Fechou os olhos. Levantou o pé direito. Golpe certeiro. Bem no meio das pernas do pequeno brutamonte, que foi ao chão, chamando pela mamãe. Depois de uns breves segundos parado, incrédulo, ele passou a mão nos olhos e ajeitou a meia direita, para ver se caia na real. Alguém lá no fundo gritou "Salve o rei da terceira série". E, ainda ofegante, ele respirou aliviado. Pois sabia que, dali pra frente, a ordem natural das coisas não seria mais tão natural assim.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Tempos modernos.

Chega cansado do trabalho. Abre a porta. Afrouxa o nó da gravata e desabotoa a camisa branca manchada pelo suor do dia a dia. É um homem trabalhador, do batente. Resultado de uma criação dura, fria, e por diversas vezes, desumana. Erros que seu pai cometeu e que, sem perceber, ele deu continuidade. A mesma rigidez, o mesmo cinto, a mesma incompreensão. Tudo o que ele odiava no seu velho, seus filhos odeiam nele. Pega um xícara de chá e, só de cueca, senta-se na poltrona. Controle remoto do lado direito, livro do lado esquerdo. O livro é o plano B. Liga a TV. Canal um, pouca vergonha. Canal dois, baixaria. Canal três, putaria. Irritado, esbraveja baixinho: "Onde foram parar os velhos costumes? Esse mundo é uma vergonha". O homem sentado no sofá parou no tempo do romance, do cortejo, do pegar na mão. Desliga a televisão e abre o livro. Lá uma história bem antiga, do tempo da inquisição, é contada. Nada de sexo, nada de bebidas, nada de música alta. Nada de diversão, também. Bem do jeito que ele gosta. Após uns bons minutos envolto na leitura, o homem seminu chega à uma conclusão: havia nascido na época errada. Ele, como toda a humanidade, deveria nascer e morrer sem enxergar o fim dos bons costumes, da pureza. Baixa um pouco os óculos de armação sisuda e olha para a direita. Na mesa de cabeceira, uma foto da mulher, já falecida. Foi uma esposa e mãe exemplar, porém submissa. De repente, um sentimento avassalador de saudade invade o peito do homem. Fecha o livro com a espontaneidade de uma criança e pega o telefone. Vasculha alguma coisa no caderno de endereços. Passa pelo contato dos filhos, do irmão e dos amigos do xadrex. Encontra o que queria. Com os dedos trêmulos de ansiosidade, disca o desejado número. Do outro lado da linha, para seu alívio, a voz diz: "Seja bem-vindo ao Loucuras na Noite. Aguarde que uma das nossas deliciosas meninas já irá atendê-lo".

domingo, 16 de agosto de 2009

Vida nova. Nova vida.

Henrique acordou nesta segunda-feira sabendo que, agora, as coisas iriam melhorar. Seus pés tocaram o chão com a confiança de que o futuro seria diferente. Lembrou-se das palavras aconselhadoras de sua mãe. Da preocupação exagerada do seu pai. Lembrou-se, também, que seguiu seus sonhos. Seu maior erro. Pelo menos, até ali. Foi até o banheiro. Ligou o torneira. Água fria, para mudar o aspecto do fracasso. A ocasião pedia uma mudança. Foi à prateleira, pegou o melhor perfume e tomou um novo banho. Foi ao armário, pegou as melhores roupas e sentiu-se um faraó. Ele havia se preparado a vida inteira para aquilo. Aquela nova realidade. A sua nova realidade. Deu uns passos até a cozinha e, enquanto o café não ficava pronto, ensaiou novamente como se apresentaria. "A primeira impressão é a que fica" repetia para si mesmo, mentalmente. Só Henrique era capaz de compreender Henrique. Café pronto. Forte. Sem açucar. Desceu bem. Despertou a auto-confiança do homem. Em cima da mesa, uma revista do mês passado. Folheou-a com o objetivo de adquirir alguma cultura, algum assunto. Percebeu tratar-se de uma revista de celebridades. Inútil para o momento. Inútil para sua vida nada glamurosa. Destino: lixo. Igual aos conselhos dos seus pais. Olhou no relógio. Dez minutos para o ônibus passar. Precisava correr. Foi até o espelho. Uma última disfarçada na careca que ameaçava nascer. Pasta num braço, currículos no outro. Sorriso na cara. Otimismo. Foi-se em busca da tal mudança.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Sem palavras.

Do silêncio de um quarto abafado pelos trinta e dois graus de uma tarde de domingo, ele anda de um lado para o outro, em busca de alívio. Não para o calor, mas sim para a ansiedade. A situação é de se estranhar. Afinal, o rapaz sempre foi supremo com as palavras. Na realidade, sempre se expressou muito melhor no mundo de papel do que no mundo real. Entretanto, ali, especificamente naquele dia, havia esquecido o abecedário. Não literalmente, apenas metaforicamente. Com os olhos confusos, sentia-se sem esperanças perante o branco da folha, onde outrora reinava absoluto. A sensação de fracasso é avassaladora.
“O que diriam se me vissem agora?”, pensa o prodígio, ainda desacostumado com aquele vai-e-vem de idéias vazias e inúteis. Num claro sinal de preocupação, ele olha para os lados. Ufa. Não tem ninguém. Uma gota de suor frio escorre pela sua face direita. Procura algo nos bolsos que possa clarear sua mente. Nada acha. Coça insistentemente os longos cabelos encaracolados, e enquanto o faz, tenta desesperadamente disfarçar o seu despreparo em lidar com a derrota. O que não é pra menos, tendo em vista seu histórico.
Aos dez anos, ganhou o concurso de redação do colégio, que hoje ostenta seu nome. Aos doze, publicou sua primeira crônica no jornal mais lido da região. Aos quatorze, lançou o primeiro romance, finalizado aos treze. Aos quinze era colunista fixo da maior revista do país. Aos dezessete, sentou-se ao lado de Veríssimo na FLIP. Aos dezoito permaneceu por trinta e três semanas seguidas no primeiro lugar dos livros mais vendidos. E, semana passada, aos vinte, estreou seu novo roteiro nos cinemas, o qual a crítica já enaltece como “inacreditável”.
Porém, hoje, o novo Machado, não é ninguém. É só mais um escritor maldito, fã de Trotski e Kafka. Daqueles ruivos, barbudos, cabeludos e sujos, que escrevem versos nas paredes com um pedaço de carvão. Comparação que, obviamente, só pode ser feita se ignorarmos sua cobertura em Copacabana, seu carro alemão último tipo e sua namorada supermodelo francesa. Ele sempre teve uma queda pelas francesas, fruto da forma como Bukowski as descrevia. Bukowski é seu autor preferido, em segredo. Isso porque, a elite, que tanto enche seus bolsos com dólares e euros, não gosta de Bukowski. Vai entender.
Inconformado e desacreditado, ele rabisca algumas coisas. Algumas porcarias. Por motivos óbvios, não gosta do que está escrito, mas tenta convencer-se do contrário. Pensa, por uns instantes, ser essa a sua redenção, mas passa batido pelo devaneio. Busca uma opinião sincera com alguns amigos não tão famosos quanto ele, mas logo descobre que quer ouvir o que quer. Nada além disso. A sinceridade é dura com tudo aquilo sem qualidade. Sem sentimento.
Sentimento. É óbvio. Numa expressão de genialidade, ao mentalizar tal palavra, o talento adormecido do jovem rapaz desperta repentinamente. Ele sente um tremor subir pelos joelhos em direção aos braços. É o sinal de que as coisas estão voltando ao normal. É um sinal de que ele é, sim, tudo isso o que dizem. A confiança cresce incontrolavelmente, superando seu ego gigantesco. Ele estica-se na cadeira de couro de jacaré, leva as mãos atrás da cabeça e começa a recordar-se de tudo o que realmente importa.
A distância, a saudade, os momentos, os dias, os meses, os anos, a cumplicidade, a identidade, os sucessos, os insucessos, o conhecimento, a experiência, a criança, o adulto, a inteligência, os limites, o nervosismo, a teimosia, a alegria, a raiva, os arrependimentos, a espontaneidade, a responsabilidade, a irresponsabilidade, os conselhos, o apoio, a preocupação, o acalento, o ombro, o sangue, os laços, o abraço, o beijo, o herói, o homem. O amor. A eternidade.
E no meio daquilo tudo. No núcleo daquele turbilhão de emoções e sensações. No centro de todas suas lembranças boas e ruins, percebe que nada que escrevesse bastaria, nem seria necessário. Toda e qualquer palavra seria substancial, sintética. A importância daquele dia, daquele domingo, era superior a tudo, inclusive ao seu talento precoce. Amor de pai e filho não se descreve, nem se escreve. Amor de pai e filho se sente. Na pele, não no papel. E assim, com um pequeno sorriso nos lábios grossos, ele assina seu nome, dobra a folha em branco e sela a carta. “Ele vai entender”, pensa. Pois é. Pai sempre entende.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Tudo escuro.

“How deep is your Love?” cantava o autorádio do Fusca 67 de Josué. Homem de meia-idade, um pouco desnutrido e, em breve, careca. Sempre usava a mesma camisa florida em ocasiões especiais como aquela. Um visual meio anos setenta – a melhor época da vida de Josué. A sua juventude.
Enfim chega ao seu destino. Pára o carro. Tenta esconder a calvície, ajeita o colarinho da camisa e, confiante como um Deus, desce. Na bilheteria, pede à simpática e humilde mocinha duas entradas. O filme ele nem sabe o nome. Sabe, simplesmente, que é uma linda história de amor, como ele julga ser a dele.
Meio constrangido com os belos olhos da mocinha da bilheteria, apanha as entradas e vai devagarzinho até a lojinha. Pede tudo em dobro. Duas pipocas sem manteiga, dois refrigerantes e dois pacotes de bala de goma. Satisfeito, vira-se de costas e vai saindo. Treze passos à frente, dá meia-volta. “Se eu esquecer o chocolate ela me mata” – exagera para o adolescente cheio de espinhas do caixa.
Senta-se no banquinho em frente à sala três enquanto arruma a bagunça causada pelo excesso de guloseimas. E lá fica, por uns seis minutos, só matando tempo. É de praxe, Josué só entra na sala quando ouve o barulhinho do retro-projetor. Nem ele sabe por que faz isso. Só sabe que faz.
O chiadinho começa e um apressado Josué entra na sala, deixando algumas pipocas pelo meio do caminho. Corajoso, adentra aquela escuridão. Cheiro de velho. Cheiro de bons tempos. A única coisa que ilumina seu caminho é a pouca luz que irradia da telona ainda em branco. Finalmente, toma seu lugar. O de sempre: quarta poltrona da esquerda para a direita, sétima fileira.
Josué está impaciente. Olha para os lados a cada vinte segundos. “A pipoca tá esfriando e eu tô morrendo de vontade de abrir essas balinhas” – pensa ele, repetidas vezes. Mas, nada. Nada nem ninguém atendem seu clamor mental, a poltrona ao seu lado continua vazia como sempre. Até que, no quinto minuto do filme, acontece.
Uma moça alta, de olhos verdes e longos cabelos encaracolados aproxima-se e pergunta:
- Com licença, esse lugar tá ocupado?
- Tá sim. Não tá vendo? Com tanto lugar pra você sentar porque vir sentar aqui?
- Poxa, desculpe. É que eu já sou meio cegueta, ainda mais nessa escuridão toda. – ri desconcertada, a simpática jovem.

Nesse momento, Josué é um babaca, e sabe bem disso. Mas, ainda assim, nem dá bola. Finge que não é com ele. Só uma pessoa importa, embora ela esteja um pouco atrasada. E assim o filme continua, apesar do clima um pouco pesado naquela sétima fileira que, até agora, tem só três pessoas: a moça, Josué e as pipocas. O resto das pequenices ele já comeu. Culpa da ansiosidade. Ou então, culpa da culpa mesmo.
Na tela, o amor vai se desenrolando e se enrolando. E lá pelos trinta minutos, depois do primeiro beijo entre o mocinho e a mocinha, a moça resolve quebrar o gelo.
- Eu adoro esses filminhos. É tão romântico. – fala baixinho.

Josué finge que não ouviu.
Ela insiste.
- Meu nome é Bárbara. Eu moro aqui perto, logo atrás da padaria. Eu nunca te vi pelo bairro.
- A única coisa que me faz vir aqui é o cinema. – diz Josué, rendido.
- Poxa, que pena. O bairro é lindo à noite.
- Não acho.
- Então não é só o cinema que te faz vir aqui, não é.
- Claro que é.
- Ué. Mas como você pode dizer que não acha o bairro lindo, se não o conhece?
- É... Bem...
- Que tal uma cerveja depois do filme? Eu ponho na minha conta. O Dionísio, dono do bar da esquina, é amigão do meu pai. Me viu nascer.

Em silêncio, Josué não acredita. Primeiro, como a moça pode dar em cima dele, mesmo sabendo que é comprometido? Segundo, como pode uma mulher, de calça jeans rasgada e camiseta hippie mal passada, ficar linda daquela forma – e ainda por cima olhar para alguém como ele? Josué não vê explicação plausível, mas, ainda gago, reluta.
- Sabe o que é... é que eu não sou muito de beber.
- Um refrigerante? – Bárbara é insistentemente linda.
- Olha, moça, obrigado pelo convite, mas não posso aceitar.
- Mas, por quê? Parece que você também tomou o maior toco.
- Eu tenho meus motivos.
- E quais seriam?
- São meus. E de mais ninguém.

Bárbara nem responde. Ao invés, troca o belo sorriso por um rosto sério, estilo caixa do Banco do Brasil, permanecendo assim até o final da sessão. Ao acender das luzes, levanta-se como se quisesse fugir e sai, para não mais voltar.
Já faz alguns minutos que a grande tela se apagou em um branco silencioso. Josué permanece sentado, tentando compreender o que acaba de acontecer naquela sétima fileira. Respira fundo, amarra o sapato. Tira um lenço do bolso, assua o nariz. Sai da sala, joga as sobras no lixo.
Com as mãos no bolso e de cabeça baixa, Josué, pé ante pé, vai até o Fusca. Abre a porta, senta no banco. Ameaça chover lá fora. Ele pega a carteira, abre-a e tira uma foto já amarelada pelo efeito do tempo. Uma moça bonita, linda, de olhos verdes e longos cabelos encaracolados. Josué beija a foto, como se fosse a primeira das últimas vezes.
- Ô, Melina, que saudades das nossas noites de quinta-feira.

Uma lágrima escorre. Josué tira as entradas do bolso e, junto com a foto, guarda-as na carteira, para fazer companhia para os outros cem sucessos e fracassos de bilheteria que ali habitam. Liga o carro e vai pra casa. Até quinta que vem.