sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Rotina.

Todo santo dia era a mesma coisa. Acordava junto com o sol, tomava uma bela xícara de café com leite e melecava-se com meio pão velho e uma pitada de manteiga. Depois era só vestir as velhas botas, o chapéu de boiadeiro, pegar sua maleta e por o pé na estrada, em direção à labuta. E da mesma forma que seu despertar, seus dias desenrolavam-se sem novidade nenhuma. Honestamente, qualquer escritor precisaria ter a loucura como pré-requisito para querer contar a história daquele homem tão desinteressante e, ainda asism, tão rejeitado.
Sim, rejeitado. Era só ele dobrar a esquina do boteco sustentado à base de cachaça e entrar definitivamente no velho e deteriorado centro da cidade que os olhares e humilhações começavam. Quem via de longe achava esquisito. Um senhor com mais ou menos sessenta e dois anos causar tanta repulsa assim. Pela padaria ele passou batido, o episódio da cusparada na cara ainda era fresco em sua memória. Na loja de bijuteria ele arriscou se encostar na parede e, até mesmo, botar sua velha maleta no chão. Mas antes que ele ousasse abri-la, a velha gorda toda coberta de ouro vagabundo corria em sua direção, com a mão espalmada. Pé na tábua, meu senhor.
Ótimo, agora sim, pensava ele. A primeira rejeição indicava o começo do seu dia. Acelerou um pouco o passo. Olhava atentamente ao redor, segurando sua mala com certa fixação. Vagabundos, sanguessugas, desprovidos de qualquer capacidade mental!, resmungava baixinho, evitando maiores confusões. Depois de uma quadra, olhou pelo vidro da pizzaria. Aparentemente, a barra estava limpa. Encostou-se na parede, colocou a camisa para dentro da calça e a maleta no chão. Levou a mão até ela, com o claro objetivo de destrancá-la. Não deu tempo.
- Ô, pá! Vá te a merda, gajo! - esperneava o português de dois metros, dono da pizzaria.
- Vá te a merda você, imigrante de merda, usurpador das maravilhas que só nosso país a de prover. Violentador de índias. Profano! PROFANO! - respondeu o velho mal visto.
- É louco! O senhor é louco! Toda semana aguentá-lo em minha propriedade, ô pá! Suma! Vá te daqui! Vá te pra longe!

Não adiantava discutir e o menor sinal de aglomeração espantou o velho dali. Segurou a maleta junto ao peito e andou sem rumo, apreensivo. O ritual se repetia, até que houve uma interrupção. Uma criança de mais ou menos seis anos estava distraída, o velho também. O choque foi forte. Ambos caíram pra trás. O chapéu voou para o meio da rua. O Comandos em Ação para perto do ralo. E a maleta, meu Deus, a maleta aterrisou ao lado da criança. Aberta.
- FECHE OS OLHOS, PEQUENO ESPIÃO! VOCÊ FEZ DE PROPÓSITO, NÃO FOI?! VOCÊ É UMA PRAGA. EU QUERO RIR EM CIMA DO SEU CAIXÃO. - disse o senhor, correndo em direção à maleta.

Ninguém mais achava aquilo normal. Aquele velho já estava passando dos limites. A criança com a bunda suja saiu correndo para os braços da sua mãe, que coincidentemente era cunhada da gorda da loja de bijuteria, que estava bem do lado do chinês da pastelaria, que fica bem ao lado da padaria do italiano, que é um grande amigo do português da pizzaria, que é casado com a irmã do árabe da sapataria. E o pior de tudo é que eles eram só um terço da multidão que formava um círculo ao seu redor. Exatamente naquele momento, ele sentiu o peso do mundo em suas costas. Ninguém falava nada, mas cada olhar, cada dedo estendido era uma bala que atravessava seu coração já cansado.
De repente, alguém gritou lá do meio PEGA O FILHO DA PUTA!. Pronto, foi o estopim para o círculo se fechar. Enquanto a manada de homo sapiens aproximava-se com passos ritmados, o velho segurava sua pasta com força descomunal. Apertava-a com tanta força que o couro já velho começava a descascar em suas mãos. Eles estavam cada vez mais pertos. Um tênis voou, acertando-o bem na face esquerda. Mais uma vez, foi ao chão. Fechou os olhos e, apesar da idade, colocou-se em posição fetal, abraçando a maleta com um aspecto maternal. O amargo gosto da ironia.
Não havia mais escapatória. O fim da vida do velho chegara dois anos mais cedo. Ele só precisava acostumar-se com a ideia, nos poucos segundos que lhe restavam. Então ouviu-se um som. Pareciam sinos, pareciam harpas divinamente angelicais, mas eram sirenes. A multidão enfurecida começou a dispersar-se, com semblante inocente. O amargo gosto da falsidade. Os carros pararam e os guardas vieram. O negro pegou o velho no chão, o branco pegou a maleta. Erro de principiante.
O velho começou a enfurecer-se, mesmo recém despertado de uma experiência com a morte. Não teve papo. Uma paulada na nuca e seu corpo amoleceu, direto para o camburão, no banco de trás. No banco da frente, os guardas buscavam uma maneira de abrir a maleta. Depois da terceira tentativa, conseguiram. Lá dentro, jaziam dezenas de livros. Na capa, acompanhando uma foto do senhor, jaziam as seguintes palavras, em fontes garrafais: Histórias Já Velhas. Surpreso, o policial branco virou-se para o negro.
- Tem que ser louco para querer contar a história desse velho fracassado.
E do banco de trás, ouviu-se:
- Prazer, louco.

2 comentários:

Ahas disse...

Porra, do grande caralho! Foda mesmo.

Victor Carvalho disse...

Valeu pelas palavras, camarada anônimo! Apareça mais vezes e, da próxima vez, deixe um endereço pro seu blog. Se eles seguirem a linha do seu comentário sem frescuras, é diversão na certa.