terça-feira, 22 de setembro de 2009

Um retrato.

Nunca teve como objetivo esconder a velhice. Deixava bem à mostra as manchas no rosto, a falha no topo da cabeça, as verrugas e, com certeza, o ar rabugento ao redor dos olhos. Carregava cada uma delas com um certo orgulho. Seu semblante cansado, cheio de histórias para contar, era sua verdadeira obra-prima. A que mais deu trabalho, pelo menos. E lá, da benção da velhice, enquanto, para alguns, ele já estava no lucro, ele se permitiu. Permitiu encontrar inspiração na simplicidade, no mundano. Não viverá o que imaginou ao ver aquele cenário. Felizmente. Olhou para o chão e enxergou-o vermelho, pintado de sangue. Não vermelho sangue. Sangue plebeu. O crânio aberto, o cérebo fora do habitat natural. A pilha de corpos. Um amontoado de incompreenssão. Levantou a cabeça e teve diante de si o olhar estarrecido dos futuros cadáveres. A palma que cobria o rosto. Os braços que clamavam por Deus. Os punhos que, por um último instante, insistiam em permanecer cerrados. Sentiu um aperto no peito, o fôlego desaparecendo. Num impulso, levou as mãos ao coração. Deixou o caderno cair. Com um pouco de sacrifício, ajoelhou-se para pegá-lo. As mãos trêmulas, as pernas fracas. Ainda no chão, olhou para cima e, definitivamente, viu seu bem-estar ir embora. Caiu duro, com o caderno rabiscado ao lado. Nos olhos, a imagem fixa das baionetas. Os chapéus para esconder os chifres. Os uniformes azuis para esconder a pele manchada de sangue. A nobreza assassina. Dois minutos depois, sentiu a humanidade voltar ao ambiente. Agora sim, poderia levantar-se. Dor nos joelhos. Dor nas costas. Dor na cabeça. Ensaiou uma reclamação qualquer e lembrou-se: antes a dor que a morte. Calou-se. Caderno nas mãos. Pé ante pé. Saiu dali. Seis anos depois, o resultado daquele três de maio.

El Tres de Mayo de 1808, Francisco de Goya

4 comentários:

Tiago Moralles disse...

Um exercício ótimo.
Representar obras em texto.
Fiz isso uma vez com um comercial, transformei em crônica, depois se quiser te mando.

Gordinha disse...

"crânio aberto, o cérebro fora do habitat natural."
Gostei desse eufemismo para miolos para fora! rsrsrs!

Quando tiver um tempo, vou ver se consigo fazer algo com esta mecanica!

Abraços!
=D

Luiz Carioca disse...

acho muito bom os textos. o mais legal é q são densos e se adaptam muito bem ao meio, a internet. parabéns.

Cristiano Contreiras disse...

Gostei do conceito, da proposta de seu blog, além de inteligente tem a seriedade. Gosto de me deparar com estes tipos de universos. Por isso, te linkarei , abraço