segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Tudo escuro.

“How deep is your Love?” cantava o autorádio do Fusca 67 de Josué. Homem de meia-idade, um pouco desnutrido e, em breve, careca. Sempre usava a mesma camisa florida em ocasiões especiais como aquela. Um visual meio anos setenta – a melhor época da vida de Josué. A sua juventude.
Enfim chega ao seu destino. Pára o carro. Tenta esconder a calvície, ajeita o colarinho da camisa e, confiante como um Deus, desce. Na bilheteria, pede à simpática e humilde mocinha duas entradas. O filme ele nem sabe o nome. Sabe, simplesmente, que é uma linda história de amor, como ele julga ser a dele.
Meio constrangido com os belos olhos da mocinha da bilheteria, apanha as entradas e vai devagarzinho até a lojinha. Pede tudo em dobro. Duas pipocas sem manteiga, dois refrigerantes e dois pacotes de bala de goma. Satisfeito, vira-se de costas e vai saindo. Treze passos à frente, dá meia-volta. “Se eu esquecer o chocolate ela me mata” – exagera para o adolescente cheio de espinhas do caixa.
Senta-se no banquinho em frente à sala três enquanto arruma a bagunça causada pelo excesso de guloseimas. E lá fica, por uns seis minutos, só matando tempo. É de praxe, Josué só entra na sala quando ouve o barulhinho do retro-projetor. Nem ele sabe por que faz isso. Só sabe que faz.
O chiadinho começa e um apressado Josué entra na sala, deixando algumas pipocas pelo meio do caminho. Corajoso, adentra aquela escuridão. Cheiro de velho. Cheiro de bons tempos. A única coisa que ilumina seu caminho é a pouca luz que irradia da telona ainda em branco. Finalmente, toma seu lugar. O de sempre: quarta poltrona da esquerda para a direita, sétima fileira.
Josué está impaciente. Olha para os lados a cada vinte segundos. “A pipoca tá esfriando e eu tô morrendo de vontade de abrir essas balinhas” – pensa ele, repetidas vezes. Mas, nada. Nada nem ninguém atendem seu clamor mental, a poltrona ao seu lado continua vazia como sempre. Até que, no quinto minuto do filme, acontece.
Uma moça alta, de olhos verdes e longos cabelos encaracolados aproxima-se e pergunta:
- Com licença, esse lugar tá ocupado?
- Tá sim. Não tá vendo? Com tanto lugar pra você sentar porque vir sentar aqui?
- Poxa, desculpe. É que eu já sou meio cegueta, ainda mais nessa escuridão toda. – ri desconcertada, a simpática jovem.

Nesse momento, Josué é um babaca, e sabe bem disso. Mas, ainda assim, nem dá bola. Finge que não é com ele. Só uma pessoa importa, embora ela esteja um pouco atrasada. E assim o filme continua, apesar do clima um pouco pesado naquela sétima fileira que, até agora, tem só três pessoas: a moça, Josué e as pipocas. O resto das pequenices ele já comeu. Culpa da ansiosidade. Ou então, culpa da culpa mesmo.
Na tela, o amor vai se desenrolando e se enrolando. E lá pelos trinta minutos, depois do primeiro beijo entre o mocinho e a mocinha, a moça resolve quebrar o gelo.
- Eu adoro esses filminhos. É tão romântico. – fala baixinho.

Josué finge que não ouviu.
Ela insiste.
- Meu nome é Bárbara. Eu moro aqui perto, logo atrás da padaria. Eu nunca te vi pelo bairro.
- A única coisa que me faz vir aqui é o cinema. – diz Josué, rendido.
- Poxa, que pena. O bairro é lindo à noite.
- Não acho.
- Então não é só o cinema que te faz vir aqui, não é.
- Claro que é.
- Ué. Mas como você pode dizer que não acha o bairro lindo, se não o conhece?
- É... Bem...
- Que tal uma cerveja depois do filme? Eu ponho na minha conta. O Dionísio, dono do bar da esquina, é amigão do meu pai. Me viu nascer.

Em silêncio, Josué não acredita. Primeiro, como a moça pode dar em cima dele, mesmo sabendo que é comprometido? Segundo, como pode uma mulher, de calça jeans rasgada e camiseta hippie mal passada, ficar linda daquela forma – e ainda por cima olhar para alguém como ele? Josué não vê explicação plausível, mas, ainda gago, reluta.
- Sabe o que é... é que eu não sou muito de beber.
- Um refrigerante? – Bárbara é insistentemente linda.
- Olha, moça, obrigado pelo convite, mas não posso aceitar.
- Mas, por quê? Parece que você também tomou o maior toco.
- Eu tenho meus motivos.
- E quais seriam?
- São meus. E de mais ninguém.

Bárbara nem responde. Ao invés, troca o belo sorriso por um rosto sério, estilo caixa do Banco do Brasil, permanecendo assim até o final da sessão. Ao acender das luzes, levanta-se como se quisesse fugir e sai, para não mais voltar.
Já faz alguns minutos que a grande tela se apagou em um branco silencioso. Josué permanece sentado, tentando compreender o que acaba de acontecer naquela sétima fileira. Respira fundo, amarra o sapato. Tira um lenço do bolso, assua o nariz. Sai da sala, joga as sobras no lixo.
Com as mãos no bolso e de cabeça baixa, Josué, pé ante pé, vai até o Fusca. Abre a porta, senta no banco. Ameaça chover lá fora. Ele pega a carteira, abre-a e tira uma foto já amarelada pelo efeito do tempo. Uma moça bonita, linda, de olhos verdes e longos cabelos encaracolados. Josué beija a foto, como se fosse a primeira das últimas vezes.
- Ô, Melina, que saudades das nossas noites de quinta-feira.

Uma lágrima escorre. Josué tira as entradas do bolso e, junto com a foto, guarda-as na carteira, para fazer companhia para os outros cem sucessos e fracassos de bilheteria que ali habitam. Liga o carro e vai pra casa. Até quinta que vem.

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