segunda-feira, 18 de abril de 2011

E então Jesus abaixou a cabeça e sorriu.

Ele a espiava com o canto do seu pequeno olho. Atrás da escada, sem fazer barulho, prendendo a respiração. Estava completamente pronto. Sabia cada movimento dela, conhecia sua rotina de cor. Ela lá, sentada na melhor poltrona do mundo. De um vermelho que combinava perfeitamente com o carpete vinho. Os desenhos davam voltas em seus elefantes e seus deuses indianos que ela, no fundo, desconhecia completamente e faziam daquele estofado o melhor estofado do mundo. Ao menos aos olhos dela. Frente àqueles olhos que já viram de tudo, aquela era a melhor poltrona do mundo. E era um imenso orgulho passar suas tardes ali. A bíblia nas mãos suavemente manchadas. Manchinhas escuras que gritavam “Dever cumprido”. Ela passava saliva nos dedos e virava a página. Era um ritual. Página após página. Palavra após palavra. Rezando baixinho para si mesma, falando só para quem ela realmente queria que escutasse. A casa em um silêncio profundo que dizia muito mais do que se podia imaginar. Os cabelos vermelhos devidamente pintados na mesma cor das longas unhas. A mesma idade há anos e anos e anos. Sessenta e dois, ou algo assim.
E ele ainda lá, embaixo da escada. Espiando e esperando o momento certo. Ela sabia muito bem que ele estava lá. E, na verdade, ele também sabia que ela sabia. Mas assim tudo ficava mais interessante. E seu mundo ainda era colorido demais e ingênuo demais e imaginário demais para que aquele momento fosse estragado por algo tão chato como a verdade. Oito anos recém completos. O corpo gordinho, o cabelo ruinzinho. Toda aquela inocência era material de sobra para os amiguinhos da segunda série. Mas ele não ligava. Contanto que momentos como aqueles continuassem a se repetir, ele não ligava. A vidinha era bonitinha, afinal. Mas ele permanecia com os olhos bem abertos. Alerta com toda a capacidade que sua pouca idade permitia. A respiração ainda devagar, os pés meio trêmulos de cansaço e as mãos nervosas apertando o canto da parede.
Foi quando o momento chegou. Ele, o sinal. Ali, estampado no bocejo longo e de direito. A bíblia quase que fecha, tamanha a força daquela boca aberta e aquele som gostoso de ouvir. Uooooooon, pela sala mais calada que o mais calado dos lugares no mais remoto dos destinos. Até que ele, num só pulo, caiu bruscamente na frente dela. Os olhos brilhando, a língua nervosa pra falar o que vinha ensaiando há tanto tempo. As mãos meio que sem saber o que fazer, às vezes mexendo no estofado da poltrona, às vezes dando pequenos soquinhos no joelho dela. E ela lá, com aquele sorriso de sempre, meio tímido, meio sem graça, mas mais sincero do que qualquer outro gesto de qualquer outra pessoa.
- Ô Vó... – disse ele.
- Oi, querido... – disse ela.
- Ô Vó, sabe o que é? É que eu to querendo ir lá pra cima.
- Sei. Mas por que você não vai? – ela sabia a resposta, mas adorava aquele joguinho.
- É o homem, Vó. O homem tá lá.
- Mas, Victor, qual é o problema?
- Poxa, Vó, você sabe, né... Ele fica lá, me olhando, com as mãos abertas. Eu não gosto. É estranho.
- Mas, filho, ele não vai te fazer nada. Ele é bom, filho.
- Vó! Ele tem aqueles olhos fundos, Vó! Eu não consigo olhar pra ele, Vó! Tira lá pra mim, por favor, por favor, por favoooooooor.
E ele se debruçava nas suas pernas finas e ainda dispostas mesmos após tanto tempo. E ela dava a risada mais gostosa que aqueles fins de semana de quinze em quinze dias podiam proporcionar.

Calçou devagar aqueles chinelos tão velhos. Não comprava um novo porque simplesmente não precisava. Por que gastar dinheiro com chinelos? Existiam coisas na vida mais importantes do que chinelos, como, por exemplo, resolver aquela situação tão urgente. Subiu as escadas, degrau após degrau. Com calma, sem pressa. Aproveitando aquela situação toda. Olhando para trás com o canto dos olhos para ver a sua cara apreensiva. Aquelas mãozinhas dele no peito, como se sua própria vida dependesse dela. E, ali, ela se sentia mãe mais uma vez. Quarenta longos anos depois, ela era mãe mais uma vez. A melhor sensação do mundo para qualquer avó. Ela chegou ao segundo andar e à fonte de todo aquele pavor. Toda aquela ansiedade. Lá de baixo, ele gritou.
- VÓÓÓÓÓ, POSSO SUBIR? – perguntou, a voz trêmula de preocupação.
- Pode. Sobe, meu filho.

Ela mal respondia e ele passava correndo por aquelas escadas e por aquele terror todo direto para a televisão e aquele mundo de mentirinha dentro do seu próprio mundo de mentirinha, deixando-a livre para seus sorrisos sinceros e seu cheiro inesquecível e seus rituais vespertinos na melhor poltrona do mundo. E, em cima da estante, um quadro de Jesus Cristo coberto por um pano de prato não tão sagrado assim. Ele também sorria.