quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Merda.

- Diz pra mim, vai.
- A verdade? Ou o que você quer ouvir?
- O que lhe for conveniente.
- A vida é uma merda.
- Para.
- Foi o que você pediu. É conveniente que a vida seja uma merda pra mim.
- Isso não faz sentido.
- Lógico que faz. Aceitar que as coisas são uma merda torna tudo mais claro. Se não vai dar certo, do que me vale tentar? Prefiro ficar aqui, sentado na minha própria merda.
- Uma hora vai começar a feder. Aí você vai fazer alguma coisa. Não vai?
- Não exatamente. Tudo tem a sua consequência. Você mete e pode ficar doente. Você ama e pode ficar louco. A consequência da merda é ir tão fundo nela ao ponto de perder a capacidade de percebê-la. Ao ponto daquilo tudo se tornar sua realidade. E, meu amigo, nós já sabemos que a realidade é uma merda.
- E você já chegou lá?
- Não sei ainda.
- É só pensar. A vida ainda te surpreende?
- E isso é critério? Desde quando a vida reserva alguma surpresa? Nascer, amar, sofrer, amar, meter, sofrer, sofrer, trabalhar, criar, trabalhar, sofrer, trabalhar, sofrer, trabalhar, morrer. Essa é a vida. A sua e alguns bilhões de pessoas.
- Essa merda não é vida.
- Merda. Vida. É tudo a mesma coisa. Você só tem que saber lidar com elas.
- E o que você tem de tão especial para ser diferente dos outros?
- Nada. Aí que tá. A merda me engoliu. Para quem quer viver acima dela, eu não existo.
- Mas eu te amo.
- Adapte-se.
- Eu tenho outra escolha?
- Não.
- Vá à merda, seu merda.
- Eu também te amo.

Terminou seu monólogo, mudou de canal e se afundou no sofá.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Má influência.

- Eu vou fazer.
- Uhum. OK. Vai sim.
- Vai se foder.
- Na boa, admite.
- Vou admitir o quê? Se eu falei que consigo é porque eu consigo.
- Consegue merda nenhuma. Nem comer sua mulher você consegue.
- Mas isso é diferente.
- Diferente a puta que te pariu. Meter e trabalhar são, basicamente, a mesma coisa. A única diferença é que em um você fode e no outro você é fodido.
- Vai se foder.
- De novo? Você já foi mais criativo, meu caro.
- Vai tomar no cu.
- Uau. Que mudança. O que que é? Perdeu seu senso de humor junto com suas bolas?
- Qualé? Para de ofender minhas bolas, cara.
- Então vai logo, porra! Termina essa merda logo pra gente encher a cara.
- Eu não quero mais encher a cara. Meu médico falou que a bebida é a culpada pelos meus problemas.
- Assim fica fácil.
- Fica fácil o quê?
- Você não percebe? Ele usa isso como desculpa pra esconder a incompetência dele. Na verdade, todo mundo usa a bebida como desculpa pra tudo. Um tsunami varre a Ásia, culpa da bebida. Uns malucos jogam uns aviões nums prédios, culpa da bebida. Sua mulher dá pro instrutor de yoga , culpa da bebida.
- Minha mulher. Aquela piranha.
- Aquela piranha o caralho. Ela é uma mulher boa. Gostosa, tem umas tetas simpáticas. Uma boca boa pra boquete. Você que é fraco. Um frouxo de merda.
- Saindo daqui eu quero beber.
- Vai de quê?
- Uísque quase puro.
- Quase puro? Que porra de quase é essa? Você vive muito no quase, meu chapa.
- É uísque com um dedo de água.
- Tanto faz. O que importa é que ele desça bem, certo? O que importa é ele te levar pra longe desse lixo todo.
- Falou bem. De vez em quando você manda umas frases boas. De vez em quando eu gosto de você.
- Bora pro bar, meu amigo. Vamos celebrar a amizade. VAMOS CELEBRAR O AMOR.
- O AMOR É O COMBUSTÍVEL DO MEU PAU.
- E vice e versa.
- Eu te amo, cara.
- Bora pro bar.

Terminou seu monólogo, deixou o trabalho por fazer e foi pro bar.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Antenas e papéis higiênicos.

Enxugo o suor que escorre na testa e olho para o relógio. Vinte e uma horas e vinte minutos, precisamente. Mais quarenta e eu estou fora daqui. Sinto uma vontade imensa de ficar deprimido. Olho ao meu redor e arranjo um motivo. A luz é artificial, a parede é cinza e é tudo frio. À minha frente, carros passam. Um a um, num ritmo interminável. No fim do meu expediente são alguns milhares de novos carros que inundam as ruas, mesmo que elas não os suportem mais. E o meu supervisor ainda vem com papo de consciência ambiental. O caralho.
Olho para o relógio mais uma vez. Um minuto se passou. Agora só faltam trinta e nove. Mais perto do fim. Mais um carro. Com a mão direita, pego uma antena e a encaixo no teto do carro. Com a esquerda giro a antena no sentido anti-horário e termino o trabalho dando uma última fixada com as duas mãos. E é basicamente isso que eu faço o dia inteiro. Fico aqui. Punhetando antena. Bronhando teto de carro. São vinte e dois anos dessa merda. O que supostamente me faria o mestre da punheta. Mas, levando em consideração que uma punheta é a maior demonstração de amor próprio, acho que estou longe disso.
- E o verdão, hein? - perguntou Carlos, meu parceiro de antena a quinze anos.
- É foda. - retruquei seco.
- Não ganha porra nenhuma.
- E o seu time tá com tudo, né?
- Ronaldão, caralho!
- Ronaldão é o meu ovo.

E essas foram as únicas palavras que trocamos naquele dia. Depois de tanto tempo punhetando um ao lado do outro, não são necessárias muitas palavras. O silêncio fala muito mais. Olhei para o relógio mais uma vez e agora faltavam uns vinte e três minutos. Decidi ignorar o relógio e só esperar pela sirene. Isso sempre fazia o tempo ir mais rápido, mas eu não sabia como. Na verdade, eu não sei de quase nada. Faço poucas coisas e não as faço muito bem. Passou mais um carro e eu punhetei mais uma antena. As coisas seguiam devagar. Era sexta-feira e a semana tinha sido uma merda. Até que eu ouço um grito.
- Que PORRA é ESSA?! Quem foi o FILHO DA PUTA que fez esse CU?!

Pela voz fina eu sabia quem era. Jesus, o supervisor. Um homem baixinho do tipo invocado. Seus cabelos são finos e ralos, penteados com muito cuidado. Os óculos tem grossas armações negras, da mesma cor da sua gravata e sapatos, que parecem nunca sair daqueles pés número trinta e sete. Ironicamente, o cara era um grande filho da puta. E repetia.
- ESSA ANTENA! QUE PORRA É ESSA AQUI? CADÊ? CADÊ MEU PAU!? EU QUERO O MEU PAU! - esperneava enquanto apertava as bolas com toda a força que tinha.
Fui até lá. Com certeza tinha sido eu. O Carlos nunca errava.
- Que foi, Jesus?
- ME EXPLICA QUE MERDA É ESSA QUE VOCÊ FEZ.
- Uma antena.
- UMA ANTENA?
- É. Uma antena. Tá encaixada.
- OLHA MELHOR! OLHA MELHOR! MEU PAU?! CADÊ MEU PAU?!
- Jesus, pelo amor de Deus. Me diz qual o problema.
Ele deu uma respirada profunda e prosseguiu.
- Não é a antena certa, José. Essa é do outro modelo.
- É a certa sim, seu Jesus. A do outro modelo tem um detalhe em prata.
- E?
- E você tá vendo algum detalhe em prata aqui?
- É... Hum... Isso aqui... Não...
- Eu vou voltar pro meu lugar, seu Jesus.
- Não, José! Espera aí um pouco. Preciso falar com você.
- Diz.
- Você anda meio desmotivado. Eu imagino que depois de dez...
- Vinte e dois anos. - interrompi, corrigindo-o.
- Vinte e dois, que seja. Depois de vinte e dois anos punhetando antena, ganhando em um mês o que eu ganho em uma semana e não sendo valorizado por isso você pode acabar ficando meio cansado. Eu até imagino e, inclusive, tento compreender. Mas eu preciso de mais animação. São carros que você faz! CARROS PRECISAM DE ALEGRIA.
- Tudo bem. - respondi e dei o sorriso mais falso da minha vida.
- Então tá joia. Não se esqueça. ALEGRIA!
Dei as costas pra ele.
- E O VERDÃO, HEIN?! - berrou ele enquanto eu me distanciava e ignorava sua presença.

Parei ao lado de Carlos. Ele me olhou com aquele olhar. Eu retribui com aquele outro olhar. A sirene tocou. Alívio. Guardei as antenas Corri até o armário, tirei as botas, as luvas, os óculos, o capacete e despejei tudo lá dentro. Em questão de segundos eu tava fora do galpão. Em questão de minutos eu tava fora da fábrica. O céu estava preto e sem estrelas. Quando cheguei estava azul e cheio de nuvens. Lá dentro isso não faz diferença. Aqui fora sim. O problema é saber qual dessas é a minha realidade.
O ônibus esperava no mesmo lugar de sempre. Entrei primeiro e fui pro fundo. Abri um jornal de esportes. Cacete, o verdão tava mesmo uma merda. A única alegria da minha vida não me dá alegria tem tempo. Logo mais, logo menos, o ônibus vai estar infestado do que sobrou de dezenas de homens. Tem os que punhetam antenas, como eu. Tem os que pintam. Os que apertam. Os que entortam. Os que retorcem. Os que moldam. Os que soldam. E assim por diante. Dezenas de corpos e mentes vazios. Imprestáveis, com habilidades inúteis. Péssimos maridos e ótimos filhos. Fecho os olhos e desperto com Carlos me chamando. Nos saudamos e eu desço no ponto mais perto de casa.
Ando uns oitocentos metros, viro algumas esquinas, subo algumas ruas e estou de frente com o meu portão. Branco, simpático e pequeno, serve de fachada para um lar infeliz. Abro a porta, tiro os sapatos e vou pra cozinha. Abro a geladeira. Um arroz de semana passada, um pouco de feijão enlatado, umas cenouras cruas e um resto de coxão mole de anteontem. Desisto. Abro uma lata de cerveja preta e a viro em dois goles. Depois disso, tiro a roupa e vou pra cama.
Minha mulher aparenta estar dormindo há horas. Virada de costas pra mim, toda coberta, seu rabo continua atraente, mesmo trinta quilos mais gordo. Sinto uma movimentação estranha na minha samba canção. Ignoro seus cabelos terrivelmente presos, sua camisola dos anos trinta e sua lingerie bege com manchas de alvejante. Deito do seu lado. Começo a passar as mãos por aquele rabo gostoso e, furtivamente, escorrego a mão direita para dentro da sua calçinha.
- Tira a porra da sua mão daí, José.
- Mas, Maria...
- Mas a puta que te pariu, José. Vai dormir. Tô cansada.
- Mas sou eu quem trabalhou o dia inteiro.
Sem resposta.
- Maria?
- O QUÊ, SEU MERDA? O QUÊ?
- Que que eu faço, então?
- Vai bater uma punheta.