quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A grande mãe. Capítulo II: Negociação.

Virei a chave e levantei a tampa. O cheiro subiu forte, impiedoso, embrulhando meu estômago. Os corpos ainda exalavam uma espécie de calor e o sangue ainda escorria, lentamente. Com muita calma, passeei com os olhos por cada um deles. Contei um total de dezoito furos no Tristan. E mais umas dezenas no traficante viado. Sorri orgulhoso, superior como sempre. Puxei toda a sujeira que encontrei dentro de mim e as cuspi em cima daquela pilha de lixo. Bati o porta malas com força, o que fez respingar um pouco de sangue e talvez miolos no meu terno preto. Yuri desceu do carro e veio ao meu encontro.
- Cacete, você não consegue parar de fazer sujeira.
- É assim que gosto das coisas, Yuri. Sujas. Reais.
- Ahhh, garoto. Um dia, que talvez pode nem chegar, você vai ver que não é assim que o mundo gira.
- É assim que ele gira pra mim. Não tenho do que reclamar até agora.
- Você já esteve no Japão?
- Como?
- No Japão. Você já esteve por lá?
- Claro que não. Nunca precisei fazer uma faxina por lá.
- Pois é. Há uns três anos atrás, fui até lá persuadir um Yakuza a fazer um harikari.
- Harikari? Pensei que você fosse um assassino, e não um diplomata.
- A maior arma que nós temos são as palavras, camarada. Enfim, depois de feito, parei num bar pra dar uma cagada e, ao dar a descarga, qual foi a minha surpresa quando vi que a água girava ao contrário.
- Sério?
- Sério.
- Tá, mas o que essa porra dessa água tem a ver com tudo isso?
- Tem a ver que, pra eles, a água girava pro lado certo, mesmo girando para o lado errado. É a mesma coisa que acontece com você e esse seu mundinho.
Parei para refletir por alguns segundos.
- Yuri?
- Sim.
- Talvez você tenha razão. – consenti, de cabeça baixa.
- É claro, meu bom garoto. Você pode aprender muito comigo. A vida é uma merda, eu sei. Mas ela não precisa ser sempre uma merda.
- Mas, me diga, quem eu vou culpar pela merda que nossas vidas é?
- Mas, me diga você, pra que um culpado, um responsável pela merda das nossas vidas?
- Justiça.
- Justiça? JUSTIÇA? Não seja tolo. O que foi que você disse agora pouco no carro, mesmo? Alguma baboseira sobre a inexistência da justiça e o reinado absoluto de leis fracassadas.
- Foi mais ou menos isso.
- Qual foi a última vez que você esteve em uma mulher?
- De graça?
- Claro.
- Nunca.
- Muitas coisas começam a fazer sentido agora. Sabe? Quando você se esquece do amor, o verdadeiro amor, acaba se lembrando dos sentimentos opostos. E esses, meu filho, ao contrário do amor, nunca mais vão embora.
- Yuri, você me falar sobre água de privada japonesa, tudo bem. Agora, guarde sua melação amorosa para suas prostitutas. Eu só quero saber uma merda de uma coisa.
- Diga, Bohr.
- O que eu faço agora?
- Sinceramente?
- De preferência.
- Honre suas marcas, sua história, sua família.
- É o único jeito, não é?
Yuri só concordou com a cabeça. Seu silêncio se esforçava para demonstrar tristeza.
- Então que assim seja. Eu só gostaria de uma coisa.
- O que quiser.
- Que fosse feito com a sua arma.

Mais uma vez, Yuri concordou com a cabeça. Buscou por uns instantes seu bolso traseiro. Estendeu-me sua Magnum dourada. Mesmo sem qualquer sol, ela reluzia bravamente. Somente quinze pessoas haviam visto um fim naquelas balas calibre cinquenta. É um número mínimo, considerando um homem com mais de mil e trezentas mortes no currículo. A aceitei de bom grado. Com um firme aperto de mãos e um olhar quase sincero, dei adeus ao meu velho parceiro. Yuri permanecia firme, integralmente intacto. Dei cinco passos na direção contraria. E qual foi a minha surpresa ao ver que, a cada passo, não me vinha nada à cabeça. Nenhuma lembrança ou memória, nenhum prazer ou desprazer. Só uma aflição, uma necessidade de cumprir com meu dever. Parei. Ajoelhei. Colei o cano em minha têmpora direita.

2 comentários:

Ahas disse...

Sabe o mais interessante? É ler os dois capítulos e não ter ideia de como a trama irá se desenrolar. Um ótimo contexto e repertório!
E o cap.III, quando sai? Não demore, estou ansioso...rs

Abraço.

Barbara C disse...

OH to gostando mto!