terça-feira, 20 de outubro de 2009

Vocação.

Era mês de junho, comecinho do inverno. Com onze anos recém completados, cabelinho arrumado e gravata borboleta, desceu as escadas e cumprimentou os parentes. Depois de umas tias gordas e uns primos valentões, foi deleitar-se nos presentes. Roupas, roupas, roupas, um peixinho daqueles que dão de graça em feira de animais. Já podia sentir seu coração se partindo, diante de tantas decepções. Porém, depois de todo esse lixo, veio o luxo. Lá no fundo, quase esquecida, uma câmera novinha. Preta, 35 mm, lentes extras. Tudo o que tinha direito.
Olhou furtivamente para os lados. Uma das tias pegava uns salgadinhos e colocava na bolsa. Os tios falavam de futebol e tomavam vodka, trazida sem o consentimento da mãe, que por sinal, não saia da cozinha. O pai, que tinha acabado de acordar, já roncava novamente na velha poltrona carcomida. A barra estava limpa. Vestiu o casaco, passou a câmera no pescoço, abriu a porta e saiu. Nevava lá fora, pra variar. Nem quando ganhou a edição limitada do Senhor Furacão Fúria sentiu-se animado dessa maneira.
Fotografava tudo o que via pela frente. Neve, plantas, bichos, carros, asfalto, pessoas, chapéus. Tudo era banal e, ao mesmo tempo, lindo. Um dia ele sentiria falta daquela ingenuidade toda, mas ainda não sabia disso. Tentava focar em uma janela até que, no meio daquela diversão sem fim normalmente definida como cotidiano, parou por um instante. Baixou a câmera, lentamente. Estava nervoso, com medo. Nossa, e agora? E se alguém me ver aqui parado?, questionava-se, sem se mover. Seus pés estavam congelados, mas não pelo frio, e sim por uma ordem vinda diretamente do seu cérebro. Aquela cena pedia mais que um clique.
Subiu a câmera ao alcance dos olhos. Mirou bem, calculou cada instante milimetricamente. Era como se ele fosse um profissional, como se soubesse exatamente o que estava fazendo, sem saber que aquele era só seu instinto se manifestando. Pronto. Os ajustes estavam perfeitos. Naquele instante, sua lente era seu globo ocular. Clicou. Clicou novamente. Clicou mais uma vez. Abriu um largo sorriso. Uau, que mulher é essa?!, disse baixinho, antes de clicar mais umas três vezes. Dia de sorte. Jovem daquele jeito, já sabia o que queria ser quando crescer: voyeur.

2 comentários:

Gordinha disse...

Conclusão: Todo garotinho tem um q de homem tarado!
hahahha!

Gostei dessa!

Abraços!
=D

Camila disse...

Hahahahahaha
Pirralho e cheio de malícia.

E eu que pensei que ele era todo doce por pensar: 'Neve, plantas, bichos, carros, asfalto, pessoas, chapéus. Tudo era banal e, ao mesmo tempo, lindo.'


BeijOs, outros.