domingo, 13 de fevereiro de 2011

Que Deus me proteja do inferno que se abaterá sobre minha vida nas próximas horas.

Eu falei alguma coisa assim e comecei a beber. O relógio marcava alguma coisa entre as dez e eu bebia alguma coisa com pouco álcool por algum motivo que não devia significar alguma coisa pra mim. Era uma noite de incertezas e eu me comportava como se ainda tivesse idade para isso. Vinte e um anos. Eu bebia em casa, sozinho, me preparando para beber no mundo real, também sozinho. Até aí nenhuma novidade. Terminei, entornei mais algumas cervejas e de repente eu já me sentia pronto o suficiente para os outros seres humanos. Me sentia merecedor deles, me sentia parte daquela massa toda. E era tão acolhedor e tão quente lá dentro. A sensação era boa e subia pelas minhas mãos, entrando pelas minhas veias e saindo pelos meus olhos em forma de brilho. Tudo isso por causa de seres humanos. Ratos e tudo mais. E eu numa festinha mental de quinze anos, dançando valsa, apaixonado e usando um vestido lindo. E tudo vinha em ondas pra mim. Enfim, ganhei as ruas.
Ser sozinho já não tinha a mesma graça de antes. Não me fazia melhor do que ninguém. Não transmitia aquela ideia de SUPERIORIDADE. Eu não era mais o cara misterioso sentado no canto do bar sozinho, tão sozinho, tão, tão sozinho. Eu era só o cara que talvez mate todo mundo aqui dentro, escrevendo o nome da ex-mulher na parede com sangue, antes de se suicidar. O que talvez fosse a resposta para meus problemas de falta de atenção. E vocês sabem bem que eu me alimento dessa porra. São os olhares que me fazem conseguir enxergar um caminho à frente. Se não for de outras pessoas, o do espelho já basta por algum momento. Um reflexo e um tanto de uma falta absurda de personalidade e uma autoestima estupidamente forçada e mais um monte de coisas que me classificariam como Lixo egoísta ou Porco para as meninas bocetudinhas desse mundo. Claro, como se elas não gostassem de homens assim. Estúpidos buracos. E eu ouço gritos vindo de algum lugar e esse talvez seja meu subconsciente me mandando parar antes que eu comece a falar sobre bocetas e amores novamente. Minha vida por continuar agindo como um porco e toda a imagem que construí pra mim. O que você talvez não perceba e elas não percebam e quem me ama não perceba é que a única coisa que eu faço é substituir coração por boceta. E eu não serei mais direto que isso. São as regras do jogo, minha linda subconsciência.
Mas os gritos não vinham da minha subconsciência, mas sim de algum lugar não longe da onde eu estava, que eu também não fazia a mínima noção da onde era. Caminhei tranquilamente até lá. Se desse tempo, tudo bem. Se não desse tempo eu caminharia normalmente com um pouco de remorso fingido. Tudo para agradar Deus Nosso Senhor. Mas ser herói nos dias de hoje não vale a pena, vocês sabem e quando eu cheguei ela ainda gritava. No chão, do jeito que saiu do ventre divino de sua mãe, aquela santa. Tinha cabelos mais escuros que a noite e dentes mais claros que o dia. Era linda. Linda demais para o herói que teria nessa noite. Não diferente de todas as outras mulheres desse mundo. Nunca fui, nem nunca serei merecor delas. Ou talvez elas que não sejam merecedoras de mim. Enfim. Cheguei mais perto e ela ainda gritava, ainda mais alto dessa vez. Ninguém por perto.
- Linda menina. Anjo de cabelos escuros e dentes brancos. Minha vida, minha existência. - essa foi minha abordagem maravilhosa. Ela olhou pra cima.
- Sim? - os olhos piscavam num clamor desesperado demais até pra mim.
- Cala a boca. Para de gritar e cala a sua boca. Você vai acordar os GATOS e CACHORROS e VIÚVAS.
- BOA, VITO. MANTÉM A CARCAÇA. GRANDE BABACA. - essa foi minha consciência falando.
- Ser sozinha é um inferno, sabe, Meu Homem? - essa foi ela falando.
- E quem garante que o inferno seja muito pior que o paraíso?
- Ninguém. Mas a gente precisa escolher entre um ou outro. Não existe meio-termo para essas coisas.
- Não acredito que suas palavras sejam tão lindas quanto você.
- Não acredito que seja você que a noite me reservou. - senti uma infelicidade por trás disso.
Essa foi minha deixa. Segurei-a pelos ombros, olhei no fundo daqueles olhos tão tão tão pretos. E a ajudei a se levantar. Saí andando sem dizer mais nada. Alguns passos à frente, barulho de saltos apressados. Ah, aquele barulho maldito. E que Deus me proteja do inferno que se abaterá sobre minha vida nas próximas horas. Ela parou do meu lado, olhou para mim e bocejou o maior bocejo do mundo. E eu causo essa reação nas pessoas. Me diz você. Continuei andando. Toc toc toc toc toc toc atrás de mim.

Compramos algumas cervejas no caminho. Um brinde desperdiçado, como todos os outros. Bebemos normalmente. Sem pressão ou impressão. Sem dizer palavra alguma. Sem as estúpidas regras de bons modos da sociedade. Um pouco mais a frente, um lugar que talvez valesse a pena. Um lugar à altura da minha presença e toda a aura de mistério e sabedoria que há por trás disso e todo o meu intelecto e toda minha capacidade de terminar frases com algum palavrão e tudo o que eu nunca fui, mas sempre quis ser. A cerveja era barata e todo o resto caro demais. Ou talvez a única coisa que compensasse na vida fosse a cerveja e os amigos e falsas alegrias que ela nos traz. Dava pra ver o céu dali de dentro. Estrela nenhuma sobre a gente. Um beijo no rosto e ela foi viver a vida dela com alguém que fosse completamente o oposto de mim. Algo mais próximo do homem ideal, ou do ser humano ideal.
Tocava Michael Jackson e Rage Against the Machine e mais algumas coisas que se fazem hoje em dia. E aquele negrão sujo ainda era superior a todo mundo. Eu pensava em milhares de coisas. Em ex-mulheres, antigas histórias, velhas risadas, lágrimas recentes demais, o amor da minha família e a falta de amor que eu tenho por mim mesmo. Mas tudo o que eu penso é lixo desde que eu nasci. Eu não valho a pena de forma alguma. Nem meus pensamentos mais lindos compensam. A música batia, eu me mexia de um jeito muito, mas muito estranho. Algumas pessoas olhavam e eu fingia não ligar, quando na verdade eu ligava até demais.
A bebida seguia seu ritual de não fazer efeito algum por mais que eu bebesse e aquilo cada vez mais se manifestava como um imenso problema para meu convívio comigo mesmo e meu reflexo no espelho. Lixo egoísta, como diziam elas. Elas. Elas. Elas. Muitas delas ao meu redor. E eu sem coragem ou sem vontade alguma de falar alguma coisa. Cheiro de álcool, perfume, suor e boceta. Só mais uma noite normal num mundo que gira errado. Ou numa cidade que corre demais e acaba perdendo sua humanidade junto com seus milhões de almas irreparáveis por palavras ou qualquer outro gesto verdadeiro de carinho. Amor e amores correndo atrasados pro trabalho e o ônibus lotado de ódio demais. E minhas pernas velhas acusavam cansaço e eu precisava de uma cadeira mais uma cerveja barata e um pouco de espaço.
Depois de um tempo, consegui. Encostei a cabeça pra trás e olhava pro céu. Ainda sem estrelas, nenhum sinal de vida lá em cima e, pensando bem, nem aqui embaixo. Um babaca esbarrou na minha cerveja e uma boa parte dela ficou pelo chão. Ele deu um sorriso sem graça, pediu desculpas, quis apertar minha mão. E tudo o que eu fiz foi apertar a mão dele de volta. Eu não era mais o mesmo. Aquela vontade toda, aquela necessidade em ser o mais forte, o mais ignorante, o mais homem. Aquilo tudo não existia mais ali. Eu só queria um pouco de humanidade, um cachorro, ficar bêbado novamente e aceitar o fato de que eu sou assim e ninguém gosta de quem é assim. Foi aí que eu ouvi mais uma vez. Toc toc toc toc toc. Aquele barulho de novo, aquele cabelo preto e aquele sorriso branco.
- Pra você se sentar do meu lado, sua noite deve estar realmente um lixo.
- Algo do tipo.
- Me diz: por que chorar e gritar, sozinha, numa noite sem nenhum traço de esperança?
- Me diz: por que você quer saber isso?
- Quero medir o tamanho da minha besteira ao tirar você do chão.

Ela não me falou o motivo daquilo tudo, mas falamos sobre a vida e sobre Bukowski e a minha infeliz e mundialmente famosa literatura e mais algumas coisas que não faziam lá muito sentido, tipo amores perdidos, amor de mãe, amor de pai, amor de pau e todas as outras sensações que pudessem emanar de um coração tão perdido quanto o meu, o dela, o seu e o de Jesus Cristo em alma e carne e sangue. Em nome do Pai, do Filho, do Espírito e do Santo e do Amém. Enfim, a conversa fluía de certa forma, embora eu nunca estivesse satisfeito com o que dizia. Tudo o que saía de dentro de mim parecia merda, parecia porra. E eu me esforçava demais pra corrigir isso e me complicava cada vez mais. Aquele não era eu. Esse não sou eu. E talvez você seja a única pessoa que saiba quem eu sou, mas você não me diria isso que eu sei. Não faz isso com ele, tadinho. E aquele dó que todo mundo tem no olhar quando me vê.
De qualquer forma, aquela inutilidade toda posta em prática me fez vê-la de outro jeito. Era como se ela tivesse me compreendido, ou ao menos tentado, ou ao menos cogitado. E na mesma velocidade em que eu tomei essa decisão ela se levantou e saiu de novo. Toc toc toc toc pela noite e essa é a primeira vez que eu descrevo uma mulher andando sem usar a palavra rabo ou boceta ou tetas. Era um carinho diferente. Carinho de bonzinho, de babaquinha, de idiotinha. Eu vulnerável demais pro meu gosto. Eu sendo eu mesmo pela primeira vez em um bom tempo. Eu vivendo a vida. A vida de filho da puta.
Tudo aconteceu quando eu fui procurá-la. Caçando uma pessoa só no meio daquela multidão de caras iguais e corpos que se mexem bem demais, porém demais. Bebendo e numa masturbação mental sobre o que dizer, como se comportar e todas as inseguranças que se abatem sobre o homem a cada dia que ele acorda. Os olhos bem abertos, as pernas fracas e os joelhos teimosos. E ela já nas mãos de outro cara em algum canto qualquer. O paraíso dela, o meu inferno. E o gosto doce da frustração na minha boca me deixando bêbado. Saí de lá, ganhei as ruas mais uma vez e cambaleei até em casa. Dormi. Sonhei com meu avô. Foi lindo. Lindo demais pra mim.