terça-feira, 18 de agosto de 2009

O machão.

Ao nascer da madrugada, Golias caminhava sozinho pela calçada. Cabeça baixa para enxergar os obstáculos escondidos pela escuridão e, principalmente, disfarçar o medo subumano que subia da espinha até o lado direito do cérebro. Ferramenta pouco utilizada, até então. Sempre foi um homem grande, digno do nome. Na escola, era o valentão. No trabalho, o pau pra toda obra. Comumente esbanjava virilidade, analisando seus músculos com precisão cirúrgica. Os espelhos eram sua perdição e a fita métrica a sua droga, condição reconhecida pelo próprio Golias. Lembrou-se disso ao avistar um folheto de curso superior largado pela calçada. E, ali, pensou com seus bíceps: "Pra que cérebro se eu tenho esse aqui, que é irmão desse aqui, que é irmão desse aqui?", ao mesmo tempo em que se socava, em homenagem aos nossos ancestrais. Para o seu azar, esse instante de distração foi o suficiente para um desnível levá-lo ao chão. Cem quilos de músculos, estatelados na calçada. Sentiu uma dor lancinante no braço esquerdo. Ergueu os olhos. Viu o osso saltado para fora da pele. Pela segunda vez no dia, pensou. "Ué, mas os ossos não ficam dentro da gente"? Constatação genial. Só assim percebeu o quão errado as coisas estavam. Sentiu a garganta apertar. Segurou o choro com toda sua força e, com um pouco de esforço, pôs-se em pé. E justamente quando nada podia piorar, sentiu um pingo na testa. Levantou a cabeça e observou que um dilúvio aproximava-se. Segurando o braço esquerdo na mão, correu em busca de abrigo. Naquele fim de mundo, o único teto era o de uma casa velha, caindo aos pedaços, aparentemente saída direto de um filme noir de pouco orçamento. Chutou o portão abaixo e correu. A chuva começava a cair, furiosa. Meteu a mão na maçaneta. A esquerda. Gritou de dor. Três segundos depois, recomposto e com a mão certa, abriu a porta. Procurou pelo interruptor e acendeu a luz. Recuperou o fôlego e gritou por alguém. Nada. Nenhuma alma viva. "Que sorte a minha", exclamou, acompanhado pelo eco. Foi fechar a porta e deu de cara com ela. "É só o vento", pensou. Pensara pela terceira vez no dia, algo raro para Golias. Virou de costas. Deu um passo. Dois. Três. Quatro. As luzes apagaram-se subitamente. Ameaçou pensar em alguma coisa, mas sua cota do dia já havia extrapolado. O silêncio da chuva lá fora foi rasgado por um grito desesperador. Golias virou história, contada por alguém com cérebro, ao invés de músculos.

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