quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A grande mãe. Capítulo V: Reação.

Enquanto eu avançava em direção aos dentes de Boris, me deleitava com seu semblante aterrorizado. As pupilas estavam completamente dilatadas, dando aos seus olhos um ar espectral. Seu nariz aberto borbulhava sangue, revelando uma respiração desesperada. Aquele era o segundo nariz que eu havia partido ao meio em um único dia. Era um bom saldo. Há um centímetro de seus dentes, seus olhos se fecharam e eu parei. Queria me divertir mais.
- PUTA MERDA!
- Que sustinho, hein?!
- Bohr, PELO AMOR DE DEUS, ME DEIXA IR!
- Tá bom, eu te deixo ir. Deixa só eu cortar as cordas.
- Eu sabia que ainda restava bondade em você. EU SABIA.

Caminhei até a ponta inferior esquerda da mesa, peguei o machado já afiadíssimo, mirei bem a corda e, com toda a minha força, fiz o corte. Pouco abaixo do joelho esquerdo de Boris.
- Ops. Errei.
- AAAAAAAAAAAAAAAAH, DEUS DO CÉU! QUE DIABOS É ISSO?!?! PUTA! QUE! PARIU!
- Desculpe. Sério.
Não ouvi nenhuma resposta. Me aproximei de seu rosto ensaguentado.
- Bohr... Bohr... Por tudo que é mais... Bohr... Por quê? – escorria sangue de sua boca.
- Você não entende, não é? VOCÊ SIMPLESMENTE NÃO ENTENDE, SEU MERDA.
- Bohr...
- Eu não tenho absolutamente NADA a perder. Não sei quanto tempo vou durar. Um dia, um mês, um ano, um século. O futuro não pertence a mim, nem a ninguém. Deus é o caralho. Buda é a puta que pariu. Stalin que se foda. Eu só quero aproveitar o agora, o instante. Por isso, meu camarada, a pergunta que você deve se fazer não é ‘por que’, mas sim ‘rápido ou devagar’.
- Rápido... Por favor... Rápido.
- Resposta errada.

Boris começou a gritar desesperadamente. Tão, mas tão alto, que seus gritos chegaram ao ponto de incomodar. Eu. Incomodado. Com gritos de dor e desespero. Muito estranho. Fui até a porta dar uma espiada em Sergey. Sentado no chão, segurava os joelhos com toda a força, chacoalhando-se para frente e para trás. Cochichava algo, parecia uma oração ou uma canção de ninar. Meus lábios se contraíram espontaneamente. Era um sorriso. Realmente muito estranho.
Os gritos cessaram. Fechei a cara e voltei ao trabalho. Limpei o machado na camisa, caminhei até o lado direito da mesa e larguei-o sobre a perna direita. Corte perfeitamente simétrico com a perna esquerda. Eu estava ficando bom naquilo. Não houve reação sonora dessa vez. Mas, a expressão... Ah, a expressão! O horror, o horror!
- Ô, Boris! Como eu gostaria que você visse isso. Eu pareço a porra de um cirurgião! Cara, eu sou foda.
- Bohr... Vem...
Atendi seu pedido.
- Sabe o que é o mais engraçado ni-nisso? O Pai ia pa-passar a ca-cade-cadeira para você.
Puxou o fôlego, engasgou, cuspiu sangue e continuou.
- VOCÊ! VOCÊ, PAI! VOCÊ! VOCÊ! HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!

As risadas ecoavam incessantemente pelo galpão. Batiam nas paredes, tropeçavam nos membros apodrecidos, mergulhavam no sangue. Mas sempre encontravam o caminho de volta aos meus tímpanos. Doía. Me senti fraco e não tive vergonha de demonstrar. E, como todo homem fraco, eu agia sem pensar. Sem aproveitar. Sem compromisso.
A passos largos, fui até a mesa. Martelo na mão esquerda, machado na mão direita. Eu me movia como um insano. Como quem eu realmente sou. Reduzi suas duas pernas a um monte de pedaços desordenados e aleatórios. Grandes, pequenos. Triangulares, quadrados. Com o martelo, esmigalhei suas mãos e braços, até eles ganharem a consistência de gelatina. Ao fim, enlacei-os com o cuidado e o prazer que uma mãe ensina o filho a amarrar os cadarços.
Boris não falava absolutamente nada. Só tremia e tentava manter os olhos abertos. Estava catatônico. Queria estar morto. Implorava em silêncio pela morte. Olhei no fundo dos seus olhos confusos.
- Camarada, você não sabe o quanto é bom. Eu nasci pra isso. Eu simplesmente nasci pra isso. Eu vou desamarrar você aqui para você ver o que eu fiz. Olha, vou ser sincero com você. Acho que você é a minha obra prima.
Desamarrei sua cabeça e puxei seus cabelos, dando-lhe uma boa visão da tragédia que ele havia se tornado.
- Vê só. O nó perfeito nos seus braços. O mosaico que fiz com suas pernas. Por sinal, esse tal mosaico se parece bem com a nossa bandeira, né? Tudo vermelho, coisa e tal. Eu, se fosse você, estaria orgulhoso.
Boris não movia um músculo da boca.
- QUAL É, BORIS? NÃO VAI COMENTAR NADA? NÃO VAI ELOGIAR?! SE VOCÊ NÃO FALA, TEM BOCA PRA QUÊ?

Peguei o martelo e soquei bem no meio dos seus dentes. Em duas tacadas, seus dentes haviam desaparecido. Sua boca era um grande negro sem fim, como minhas memórias. O desmaio foi quase instantâneo. De repente, aquilo não tinha mais graça nenhuma. Olhei para minhas mãos sujas de sangue e me senti um covarde, um carnívoro filho da puta, uma madame consumidora de peles. Peguei a Magnum de Yuri no meu bolso traseiro e coloquei uma bala na cabeça de Boris. Aquele foi o meu pedido de desculpas. Envergonhado e cabisbaixo, fui até o lado de fora e me sentei ao lado de Sergey.
- Qual o seu segredo, Sergey?
Não houve resposta.
- Sergey? Responde, porra. Qual o seu segredo?
- QUE SEGREDO?! SEU DOENTE DO CARALHO! QUE SEGREDO?!
- Como você convive dia após dia com a vergonha? Como você consegue se olhar no espelho?
- E quem disse que eu convivo? – ele parecia disposto a ajudar.
- Eu falo sério. Qual é. Você deve ter algum segredo.
- Na verdade, sim.
- E?
Sergey levantou a camisa e mostrou sua barriga. Cortes a cobriam por inteiro.
- Sempre que termino uma faxina, eu faço isso. Pego um pedaço de vidro e vejo até onde aguento. Tento tirar a sujeira de dentro de mim. A vergonha. Essa merda toda. Adianta pouco, mas adianta.
Cavoquei o bolso esquerdo do paletó e ainda estava lá.
- Tá vendo isso aqui, meu chapa?
Estendi a Sergey uma foto antiga, amarelada e corroída pelo tempo.
- Bonita. Quem é?
- Minha mãe. Ela é sueca.
- É? Isso quer dizer que...
- Sim, ela ainda está viva. Pelo menos é o que diziam as cartas dos meus irmãos, três anos atrás.
- E por que você só olha pra ela numa foto, e não em carne e osso?
- Ela tentou me abortar, sabe? Não conseguiu. Depois, aos cinco anos, ela tentou me trocar por um quilo de carne. Também não conseguiu. Aos nove ela tentou me matar. Por pouco obteve sucesso. Depois disso, não lembro de mais nada. Fugi. Fui pulando de reformatório em reformatório. De beco em beco. De viela em viela.
- Essa é a pior história que eu já ouvi.
- Pois é.
- Então me diz por que guardar essas lembranças no bolso do paletó?
- Não sei, ela simplesmente me dá força. Me dá uma razão para viver.
- É. O amor é algo realmente incrível.
- O amor, não. O ódio.

1 comentários:

Barbara C disse...

Tive que tomar muito folego para ler até o final é muito sangue para mim ,nem filme de terror eu assisto ,mas...
Como já havia dito Born apesar de tudo é um personagem que voce acaba sintindo um simpatia por doentio que isto possa parecer.
legal ..