quinta-feira, 22 de abril de 2010

Porcos gostam de sujeira.

Nem se lembrava da última vez em que esteve tão feliz. Seu sorriso era incontrolável, ele simplesmente acontecia. Era como a fome na África. Já havia desabotoado os primeiros botões da camisa e tirado os sapatos. Queria parecer jovem. O cabelo cheio de gel, a cueca mais limpa que tinha no guarda-roupa. O bolso cheio de KY. Assobiava umas músicas do The Mamas and the Papas e tentava repassar mentalmente as posições que havia lido num livro. Coisa de contorcionista.
Tocou a campainha e esperou. A porta continuava fechada, igual à cara do Gonçalves, o mais filho da puta dos filhos da puta da repartição. Gonçalves, seu pé no cu, pensou e tocou a campainha de novo. Esperou mais uns segundos e seu sorriso já não era tão forte assim. Até que a porta se abriu, e ele se acendeu mais uma vez. A fome na África continuava lá, mas pelo menos ele sorria. Ela abriu a porta gargalhando e contorcendo-se de tanto que se divertia. Nem olhou em seu rosto, a alegria a havia cegado. E ele só ficou lá, parado, esperando ela parar de rir. Ela parou.
- Entra logo, porra!
- Não vou incomodar nada?
- Vai me incomodar você aí, parado, com essa pica mole e essa cara de bosta. Vem se divertir.

Ela o puxou pelo braço e o encaminhou para dentro do seu apartamento. Ele odiava quando ela falava daquele jeito. O cheiro era doce. A fumaça dançava por entre a pouca luz que saía do abajur. E aquilo era maconha, e aquilo era bom pra cacete, mas aquilo deixava ele de pau mole. E, naquela noite, especificamente, o pau dele precisava subir. Procurou uma garrafa ainda cheia em cima da mesa e encontrou um pouco de saquê. Tomou um gole, achou horrível, mas manteve o copo na mão. Sentou-se no sofá, cruzou as pernas, tomou mais um gole, achou ruim mais uma vez e, sem ela perceber, largou o copo num canto qualquer. E ela ainda não o havia beijado.
Ouviu um barulho de descarga vindo de não muito longe dali. Sentiu-se incomodado, mas escondeu o sentimento. Aquela noite era dele e dela, e de repente tinha alguém fazendo merda no banheiro e ela ainda estava na cozinha fazendo um Bloody Mary, cujo sabor lhe dava náuseas. Contou os passos do sujeito do banheiro até a sala. Deram dois passos e meio. Ele já estava cansado de tentar tirá-la dali, de tentar levá-la para seu apartamento, com o quádruplo do tamanho daquele, o que não significava riqueza nenhuma. Até que seu algoz surgiu em sua frente.
É só isso? Essa porra aí?, pensou. A boca do sujeito estava suja de vômito. Ainda suja. Seus olhos estavam perdidos e sua voz era arrastada antes mesmo de ele se pronunciar. Usava uma camisa xadrez de flanela e a calça tinha furos nos joelhos. Sem sinal de sapatos. Que original. Ele veio, meio mole, meio morto, e se sentou ao seu lado.
- O que te traz aqui? – perguntou, a voz arrastada.
- Ela.
- Sabe o que me traz aqui?
- Não.
- Meus pés, cara. Eu não preciso de mais nada, além da minha liberdade e dos meus pés. Um passinho, dois passinhos e eu vou onde eu quero. Esse porquinho aqui, do lado desse porquinho aqui, do lado desse e do lado desse e do lado desse. - disse, mexendo nos dedos dos pés, um a um - MEUS PORQUINHOS, CARA!
- Legal. Belos porquinhos você tem.
- Pois é. Sabe por quê? Porque eu não mantenho eles presos em sapatos. É! Eu sei que você usa sapatos, cara. Não adianta tirá-los e largá-los por aí. Porque eu sei que você usa sapatos. Belos sapatos, sapatos caros. Você não tem porquinhos. Você é um porquinho. Um porquinho capitalista.

Ele riu com o canto da boca, tentando se manter superior e se esforçando para esconder o ciúme que tinha daquela situação toda. Ela voltou com três Bloody Mary e ele se sentiu aliviado e depois nauseado. Ela e o sujeito viraram aquele sangue de menstruação com gosto de tomate em poucos goles. Coisa de quem já tá na mesma há um bom tempo. Ele continuou segurando-o e esquentando-o. Assim pelo menos ele teria uma desculpa. Ele já imaginava o diálogo.
- Porra, bebê, isso aqui tá quente. – ele diria.
- Nossa, é verdade. Não precisa tomar mais não. Agora deixa eu chupar o seu pau. – ela responderia.
E ele só imaginava.

O silêncio sufocava. Muito mais do que a gravata ou os sapatos. Nesse ponto o sujeito tinha lá a sua razão. Sapatos eram uma merda. Ela abriu a boca e começou a falar frases aleatórias sobre Godard, Tolstoi e a fome na África. Mas aquilo não era ela. Ela forçava, queria impressionar de qualquer forma. Não a ele, mas ao sujeito. E o sujeito só consentia, mexia a cabeça para cima, para baixo, para a direita, para a esquerda. O sujeito era a voz da razão sem voz, nem razão.
Ele se mantinha calado e odiava tudo aquilo. O sujeito se virou para ele e começou a falar mais. E ele sumiu dali. Sabia que o sujeito falava algumas coisas sobre capitalismo, gel para cabelo, ternos e porcos. Os porcos voltavam toda hora. A boca parecendo um chiqueiro. Pelos porcos e pelo vômito. E ele em outro lugar, sem ser ali.
Cansado de ouvir, ele se levantou. O copo ainda cheio de Bloody Mary na mão e as bolas bem guardadas na sua melhor e mais limpa cueca. Respirou fundo. Ela fazia silêncio, o sujeito falava sobre a ditadura, mesmo tendo nascido anos depois dela. Ergueu seu copo, homenageou os que já se foram e o estraçalhou na parede, gritando ISSO SIM É ARTE! ISSO SIM É A REALIDADE, MEU CARO AMIGO HIPPIE. ESSA BOCETA NA PAREDE É O SEU SISTEMA SOCIALISTA DE MERDA. ELE É VERMELHO E ESCORRE, IGUAL ESSA PORRA DE RESTO DE VÔMITO NA SUA BOCA, SEU MERDA. AGORA LEVANTA E VAI LÁ LAMBER A SUJEIRA. POR QUE EU SEI QUE VOCÊ GOSTA DE SUJEIRA.
Fechou os primeiros botões da camisa, calçou os sapatos, agarrou-a pela cintura e a levou para o quarto. No meio do caminho, ela pedia para ser comida. Implorava e gemia, com aquele pau ainda muito longe dela. E ao fundo o sujeito lambia e grunhia. Quem é o porco agora, seu filho da puta?, pensou. Fechou a porta do quarto e o mundo voltou à ordem do lado de fora, enquanto a bagunça começava do lado de dentro.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O começo.

Las Vegas costuma ser uma cidade quente. Lembro-me bem de uns verões de quarenta e seis graus, coisa de país subdesenvolvido. Não sei se esse calor todo vem do jogo, da bebida ou das drogas. Mas sei que hoje a noite amanheceu especialmente fria. Ainda assim, nada insuportável. Só fria. O suficiente para me fazer pegar um casaco velho que meu pai me deu no verão de oitenta e nove. Puta que pariu ganhar um casaco de presente em pleno verão. Meu velho sempre foi fã de uma liquidação vagabunda. Sempre foi um bosta também. Pai de merda, eu tive.
Estou bêbado, caminhando por uma calçada suja, lamacenta e cagada, equilibrando-me em portas fechadas, pichadas e mijadas. Meu hobby nessas horas é ler panfletos espalhados pelo chão. Às vezes, dá pra descolar umas horas de distração com eles. A minha vida é uma merda e eu sei disso, pelo menos por essa noite. Mas, tudo bem, sinto-me no lugar certo. Sinto-me em casa.
Sigo pela escuridão. Até que, após quinze minutos de caminhada, ouço uns cochichos vindos bem de pertinho. Inclino a cabeça para escutar o que a moça semidesmaiada e seminua que carrego nas costas quer. Coitada, os panfletos estavam tão interessantes que me esqueci dela.
- Alô... Que... É... Que... Onde? – tenta falar a jovem, desnorteada.
- Faz silêncio. Tá tarde pra cacete. Amanhã eu te explico. – oriento.

A tal mulher obedece e se cala. Desmaia, na verdade. Ainda assim, é ótimo saber que tenho algum controle sobre a situação. Seguimos bambos por essa cidade imunda. Eu tento desviar de poças de sonhos disfarçadas de vômito. Em vão. Na sola esquerda do meu New Balance noventa e sete um ator coadjuvante, e na direita uma bailarina acima do peso. Estou estranhamente agressivo hoje. Eu costumo ficar irritado quando tomo uísque, mas não agressivo. Vai ver é o frio. Sinto meus dentes rangendo e confirmo: É, é o frio, sim.
Só mais três minutos andando (ou, pelo menos, tentando) e encontro-me na porta de casa. Eu e minha amiga desconhecida. Tem um Ford preto parado do outro lado da rua. É raro um desses por essas bandas. O lugar onde estou tentando viver é um edifício antigo, devidamente detonado pelo tempo. Já foi o lar de algumas estrelas emergentes da Broadway e de alguns traficantes poderosos. Hoje é o lar de umas putas velhas, uns viciados e uns veteranos do Vietnã. Não importa, esse é o meu lar. Pelo menos até algo tão ruim aparecer. Procuro bruscamente pelas chaves no bolso traseiro do meu jeans. Enquanto faço isso fico imaginando como seria maravilhoso encontrar uma nota de dez dólares esquecida. Como seria intenso sentir aquela sensação momentânea de esperança. Ô, que saudades dessa sensação.
Merda! Encontro somente meu molho de chaves. Está escuro, mas eu sei que é o meu molho de chaves. Que eu saiba, só eu tenho um chaveiro do Darth Vader nesse prédio. Abro a porta e, como de costume, ela faz um barulho enorme, por mais cuidado que eu tome. Entro com o pé esquerdo e tomo um susto. Havia me esquecido como é nojento o hall de entrada do prédio. Lembro-me da casa dos meus pais.
Com um pouco de sacrifício, começo a subir as escadas. Lá pelo quinto degrau, minhas orelhas começam a ficar vermelhas. Culpa do cansaço. Culpa da raiva de chegar até aqui. Para ser sincero, eu queria, mesmo, era ter desmaiado no boteco, como faço toda sexta-feira. Pena que hoje é sábado. Ainda faltam umas três dezenas de degraus. Explodo. “PORRA, SUA VACA! ACORDA!”. Ela nem se move. Tadinha, nem esperei ela acordar pra falar minhas asneiras. Foda-se.
Alguns metros acima encontro um casal. Ou melhor, uma puta e seu cliente. Um lugar como esse há uma hora como essa não tem espaço para apaixonados. Eles nem se importam comigo ou com a minha amiga. Eu passo e comprimento com a cabeça. Não é porque eles tão se fodendo que eu vou pouco me foder pra eles. Sigo tentando chegar até meu quarto, pensando em como aquelas escadas devem estar geladas e desconfortáveis. Eu ando pensando muito ultimamente. Devo confessar que isso me preocupa.
Lar doce lar. Finalmente estou em casa. Chego exausto demais para prestar atenção onde piso ou para fechar a torneira da pia, que pinga há dois dias. Alguns passos e estou frente a frente com minha cama. Jogo a desconhecida em cima do colchão sem lençol, cubro-a com um cobertor surrado e deito-me ao seu lado. Se não fosse tudo o que aconteceu, diria se tratar de um momento bonito, um começo.
Essa noite eu só quero dormir. Dormir com as roupas do corpo, sem banho. Dormir do jeito que vivi o dia. Levar as lembranças pra cama. Começo a fechar os olhos, quando subitamente a individua desperta do seu sono profundo, da mesma forma que a Bela Adormecida acorda ao beijo do príncipe. Olho ao redor pra ver se acho algum príncipe misterioso. Só eu. E ela.
- Que... On... Que horas são, porra? – pergunta ela, sem cerimônias.
- Não acredito. Agora que é a hora de dormir você acorda. – observo, sem malícia.
- Dá pra me responder? – da onde veio tanta hostilidade?
- A hora não importa. Volta a dormir.
- Dormir? Rárárá! Meu amigo, você sabe o quanto eu bebi essa noite?
- Não tanto quanto eu. Isso eu posso te garantir.
- Que bom que eu não preciso de tanto assim para ficar excitada.
- Puta que pariu. Na boa? Estou começando a preferir você desma...

Não deu pra terminar a minha frase. Já ela, ela, sim, terminou de tirar o tomara-que-caia preto que vestia. Sutiã eu não vi em nenhum lugar. Maravilha, assim fica mais fácil. Sutiãs sempre me atormentaram. Ela tem sede de sexo e, talvez, algo a mais. Abre o zíper da saia quase tão rápido quanto arranca os jeans do meu corpo. Sua boca procura a minha desesperadamente. Encontra, satisfeita. Estamos em chamas. Estamos bêbados. Eu seguro sua cintura com força, quase com raiva. Já não me lembro de quase nada do bar até aqui. Começo a me sentir um pouco mais pecador que o costume. Foda-se. A partir daqui, a noite promete.

Nota imbecil do autor babaca: Esse é o primeiro capítulo de um livro que comecei a escrever ano passado e que, por motivos óbvios (qualé, é uma bosta, pode falar) nunca será concluído. Quem tem saco pra acessar esse blog percebeu que ando meio sumido. Bem, em primeiro lugar, estou ocupado com coisas que realmente poderão me dar um futuro, tipo TCC e trampo. Em segundo lugar, estou ocupado com outro livro, muito mais foda que essas linhas aí em cima. Vai demorar pra cacete pra ficar pronto, mas vai ficar. Mesmo que eu o use para limpar o meu rabo depois, eu o terminarei. Ah, se terminarei. Continuamos agora com nossa programação não tão normal assim.