segunda-feira, 31 de agosto de 2009

F5.

Os olhos nervosos. A boca seca. As sobrancelhas impacientes. Mesmo imóvel na cadeira reclinável, ele nunca estivera tão agitado. Girava de um lado para o outro. Tomava latas e latas de Coca-cola, uma atrás da outra. E, com os dedos, brincava com seu umbigo quase encoberto pela barriga desproporcional ao resto do corpo (com a exceção do queixo duplo). De fato, era um homem nojento. De fato, seria virgem até sua morte, por infarto, aos quarenta e dois anos. Pegou seu boneco do R2-D2, intacto, ainda dentro da caixa. "O que acontece? Por que nada acontece? O que eu faço da vida agora?", cochichava ele. O robô não dizia nada. Nem o robô gostava dele. Pelo menos não na vida real. "RESPONDE ALGUMA COISA! EU PAGUEI CARO POR VOCÊ! EU VENDI MEU RIM POR VOCÊ!", do cochicho foi para os berros, numa fração de segundos. O simpático robozinho permanecia quieto. O silêncio não era culpa dele, mas sim da mente doentia do gordão. A caixa foi completamente rasgada, num ato irracional. "NÃÃÃÃÃÃÃO! O QUE FOI QUE EU FIZ?!", vociferou o rolha de poço, com os braços curtos estendidos para o céu. Aquilo não se fazia. Todo seu prestígio na comunidade de colecionadores estava espalhado pelo quarto, lado a lado com as ratazanas. Definitivamente, sua vida não fazia mais sentido. Tentou o F5 mais uma vez antes de se atirar pela janela. Na tela do computador, um animal muito parecido com ele era carregado por uns passarinhos cor-de-laranja. Twitter is over capacity.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O ladrão de paciência.

Pegou o telefone e discou o número que queria. Fazia um sol delicioso lá fora. O céu ostentava um azul poucas vezes visto por aquelas bandas. Do quarto, dava pra ouvir a mulecada jogar bola. "PASSA! LADRÃO! FILHO DA PUTA, JOGA NADA!", gritavam. "Essa criançada de hoje em dia não tem mais educação mesmo", pensou o senhorzinho. Apesar disso tudo, ele não se exaltava. Era paciente que só ele. Só ele.
Terminou de discar. O telefone chamou. Chamou. E chamou de novo. Finalmente uma gravação atendeu. Dizia uma série de coordenadas, enumeradas de um a nove. Pro azar do senhorzinho, a que ele precisava era a nona. Apertou o número nove. "Ah, diabos!", exclamou. Mais uma vez a gravação dizia uma série de coordenadas. Nenhuma correspondia à dúvida dele. Teclou um número qualquer, a gravação respondeu: "No momento todos os nossos atendentes estão ocupados. Previsão de atendimento em quatro minutos". Fazer o quê? Esperou pacientemente, forçando um sorriso de canto de lábio.
Passaram-se seis minutos e alguém do outro lado atendeu. Finalmente um ser humano! O senhorzinho começou a explicar sua dúvida. No meio, foi interrompido pela atendente.
- Senhor, aqui não podemos resolver seu problema, senhor.
O senhor respirou e prosseguiu.
- Ó, Deus. Onde eu posso resolver isso?
- Estarei transferindo o senhor para a assistência técnica, senhor. O senhor pode estar aguardando?
- Claro, minha boa moça.

A gravação voltou, anunciando um tempo de espera de oito minutos. Oito minutos! Mas, tudo bem. O sol brilha lá fora e a criançada segue batendo bola. "ENFIA A BOLA NO CU, GOLEIRO FILHO DE UMA VAGARANHA!", continuavam a espernear os pimpolhos. O senhorzinho ficou embasbacado, mas ainda assim curioso para descobrir o significado da maioria daqueles palavrões, especialmente "vagaranha".
A musiquinha começava a dar nos nervos. Era uma mistura de notas aleatórias. Sol, sol, mi, fá, lá, lá, lá, sol. Pelo menos era assim que ele entendia. Olhou no relógio. Dez minutos haviam se passado. Começou a mexer a perna insistentemente. Aquilo era um claro sinal de nervosismo. Ou ansiosidade, o que era mais provável.
Finalmente, alguma alma caridosa no call center atendeu à chamada daqueles pacientes cabelos brancos. A voz dela era doce, suave, transmitia prestatividade. "Nossa, essa moça deve ser muito bela", pensou sozinho. A conversa se desenrolava tranquilamente, até que as coisas começaram a mudar.
- Senhor, vou precisar confirmar alguns dados seus.
- Claro, senhorita. Posso chamá-la assim?
- Não. CPF, RG, carteira de trabalho, número do cartão de crédito e endereço.
O senhor confirmou tudo, um por um, perdido em uma pilha de documentos.
- Obrigado pela atenção, senhor. Eu estou vendo aqui que você está sem sinal de TV a cabo.
- É! Logo hoje, que tem um filmão no canal das antiguidades. É com o James Dean!
- Já verificou se o aparelho está ligado na tomada? Se o cartão está inserido corretamente?
- Claro! Foi a primeira coisa que eu verifiquei.
- Senhor, já detectamos o problema. Você vai ter que fazer o seguin...
"No momento todos os nossos atendentes estão ocupados. Previsão de atendimento em quinze minutos", cortou a voz robótica.

A decepção tomou conta do olhar cansado do senhorzinho. Ele abriu a boca e um fio de baba escorreu, sem querer. A mão amoleceu e o telefone ameaçou cair. Só ameaçou. Puxou todo o ar que encontrou nos pulmões. Tranquilamente, colocou o telefone no gancho.
FIIIILHA DE UMA VAGA... foi possível ouvir do lado de fora, antes que os gritos fossem abafados pelo travesseiro. A mulecada entrou correndo. Uma chuva estava se aproximando, furiosa.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Eureka!

Sentado embaixo da árvore, na sombra acolhedora das folhas e galhos, tinha uma caneta na mão, um caderno no colo e nenhuma ideia na cabeça. Nem aquele lugar brilhante, fonte de inspiração de gênios como Newton e suas maçãs adiantara. O branco do papel era tão forte, mas tão forte, que seus olhos ardiam. E seu coração apertava. "Poxa vida, eu sempre fui o cara das ideias", pensava o jovem rapaz de cabelos amarelos e olhos de jabuticaba. Girava a caneta como um rockstar e suas baquetas. Mordia a tampa como uma criança e sua prova de matemática. Não se reconhecia. Nem se aceitava. Também pudera, estava lá há mais de duas horas e as coisas insistiam em manter-se iguais: um grande e sufocante nada. Tentou assobiar sua música preferida do Beethoven. Tentou, inclusive, reproduzir as melhores frases do Marlon Brando. Não adiantou foi nada. Estava pra desistir. Jogar a toalha. Quando veio o estalo. "Toalhas auto-secáveis! É claro, porra"! Aquele era seu primeiro palavrão em meses. Num pulo só, levantou-se. Dava pra perceber uma lágrima de felicidade escorrer do seu globo ocular esquerdo. Depois de umas cambalhotas e uns beijos distrubuídos aleatoriamente, voltou ao seu lugar. Caderno no colo, caneta na mão. "Agora só falta fazer funcionar", disse pra si mesmo. É. De volta pra prancheta, camarada.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Coisa de criança.

"Acorda! Corre! Me ajuda! Fogo!", ouviu sua mãe gritar lá do quarto, a duas paredes de distância. Levantou de súbito, apavorado. Na cabecinha, a falta de opções diante da situação. No coraçãozinho, o nervosismo incontrolável diante do calor violento que amolecia o papel de parede. Pegou seu ursinho e desceu escada abaixo. Deixou pra trás os gritos abafados da mãe, ainda lacrada onde outrora repousava tranquilamente. Mas, tinha que ser assim. O fogo não pergunta se você tá bem, nem se pode chegar pra bater um papo. Ele simplesmente vem. Desesperado, correu até o quintal e pegou a maior mangueira que viu. Ela ultrapassava seu tamanho facilmente e, com um pouco de esforço, também o peso. Mas, mesmo assim, o pequeno gigante carregou-a com suavidade, escada acima. Agora, sim. Era a hora da verdade. Ele e o fogo, o fogo e ele. De repente, sentia-se um hominho. Mirou firme, bem no foco do fogaréu. Após uns segundinhos, só sobrou ele, vencedor. Peito estufado, respiração ofegante. "Filho?! Filho?! Você tá aí? Acorda!", disse sua mãe, ainda nervosa. Finalmente, o pesadelo havia acabado. Levantou de súbito. Sua mãe batia na porta. Olhou para baixo, decepcionado. Ah, não. De novo, não!

Realidade impiedosa.

Saiu sem avisar a patroa. Foi só buscar o pão. Coisa rápida. "Se pá, ela nem sente a minha falta", pensou o pretinho. Cresceu rápido. Amadureceu da noite pro dia. Muleque das entregas aos oito, soldado aos doze, pai aos dezeseis. Veste o chinelo. Abre a porta do barraco e sai. Três passos e o chinelo arrebenta. Volta um pouco e deixa ele cair na porta de casa. Não podia se dar ao luxo de desperdiçar aquele pedaço de plástico, aquele pedaço de si mesmo. Pé no chão, do mesmo jeito que passou a infância interrompida. Anda doze metros e encontra seu destino. Nove milímetros, no meio da testa. Olhos abertos. Sangue. Horror. Saudade. Uma vida chega ao fim quase tão rápida quanto essa história. Mais uma.

Parágrafo inspirado pelas rimas talentosas do: www.myspace.com/emicida

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O machão.

Ao nascer da madrugada, Golias caminhava sozinho pela calçada. Cabeça baixa para enxergar os obstáculos escondidos pela escuridão e, principalmente, disfarçar o medo subumano que subia da espinha até o lado direito do cérebro. Ferramenta pouco utilizada, até então. Sempre foi um homem grande, digno do nome. Na escola, era o valentão. No trabalho, o pau pra toda obra. Comumente esbanjava virilidade, analisando seus músculos com precisão cirúrgica. Os espelhos eram sua perdição e a fita métrica a sua droga, condição reconhecida pelo próprio Golias. Lembrou-se disso ao avistar um folheto de curso superior largado pela calçada. E, ali, pensou com seus bíceps: "Pra que cérebro se eu tenho esse aqui, que é irmão desse aqui, que é irmão desse aqui?", ao mesmo tempo em que se socava, em homenagem aos nossos ancestrais. Para o seu azar, esse instante de distração foi o suficiente para um desnível levá-lo ao chão. Cem quilos de músculos, estatelados na calçada. Sentiu uma dor lancinante no braço esquerdo. Ergueu os olhos. Viu o osso saltado para fora da pele. Pela segunda vez no dia, pensou. "Ué, mas os ossos não ficam dentro da gente"? Constatação genial. Só assim percebeu o quão errado as coisas estavam. Sentiu a garganta apertar. Segurou o choro com toda sua força e, com um pouco de esforço, pôs-se em pé. E justamente quando nada podia piorar, sentiu um pingo na testa. Levantou a cabeça e observou que um dilúvio aproximava-se. Segurando o braço esquerdo na mão, correu em busca de abrigo. Naquele fim de mundo, o único teto era o de uma casa velha, caindo aos pedaços, aparentemente saída direto de um filme noir de pouco orçamento. Chutou o portão abaixo e correu. A chuva começava a cair, furiosa. Meteu a mão na maçaneta. A esquerda. Gritou de dor. Três segundos depois, recomposto e com a mão certa, abriu a porta. Procurou pelo interruptor e acendeu a luz. Recuperou o fôlego e gritou por alguém. Nada. Nenhuma alma viva. "Que sorte a minha", exclamou, acompanhado pelo eco. Foi fechar a porta e deu de cara com ela. "É só o vento", pensou. Pensara pela terceira vez no dia, algo raro para Golias. Virou de costas. Deu um passo. Dois. Três. Quatro. As luzes apagaram-se subitamente. Ameaçou pensar em alguma coisa, mas sua cota do dia já havia extrapolado. O silêncio da chuva lá fora foi rasgado por um grito desesperador. Golias virou história, contada por alguém com cérebro, ao invés de músculos.

Virando hominho.

A terceira série era barra pesada. E ele sabia bem disso. Não é pra menos. Ela ficava bem no meio. Aluno de terceira série não era mais tão criança pra ser protegido pela professora. Mas também não era grande o suficiente para encarar os valentões da quarta e quinta série. Essa injustiça ficava bem clara na hora do recreio. O parquinho ficava com a primeira e segunda. A quadra com a quarta e quinta. E ái de quem ousasse mudar a ordem natural das coisas. Ciente da situação, ele assistia tudo em silêncio. Sentado no banco, com sua lancheira do Senninha, seu Toddynho, seu cabelo tigelinha e suas finas meias brancas até a canela. De vez em quando pintava alguém para trocar umas figurinhas, mas ficava só nisso. Dia após dia, a mesma cena. Dia após dia, os mesmos vinte minutos desperdiçados. Até que, num recreio aparentemente qualquer, as coisas finalmente começaram a mudar. Do seu lugar de costume, ele acompanhou a bola de futebol sair voando da quadra, até parar nos seus pés. Diante dos gritos apressados dos grandalhões, ele não teve escolha. Fechou os olhos e meteu o pé. Calculou mal. A bola pairou pelo ar em câmera lenta até a testa de um repetente da quinta. Logo o maior deles. Que azar. Seu destino estava selado: depois da aula, na saída. Não havia escapatória. Seu encontro precoce com a masculinidade já estava marcado. Durante o resto da aula, ele rezava para que o tempo parasse. Prece que não foi atendida, como o sinal fez questão de frisar. Havia chegado a hora. Roendo as unhas, caminhou trêmulo até o portão. Uma rodinha de moleques de todas as idades, e até umas meninas, já esperava por ele. O repetente estava lá no centro, estralando os dedos. Dentro do círculo, procurou por um canto para a sua mochila do Power Rangers. Não encontrou. Deixou-a cair no chão, displicentemente. Cerrou os punhos. Lembrou do Karatê Kid. O grandão deu uma risada irônica e foi pra cima. Assustado com aquela fúria toda, viu seus oito anos de vida passarem mentalmente, num só flash. Fechou os olhos. Levantou o pé direito. Golpe certeiro. Bem no meio das pernas do pequeno brutamonte, que foi ao chão, chamando pela mamãe. Depois de uns breves segundos parado, incrédulo, ele passou a mão nos olhos e ajeitou a meia direita, para ver se caia na real. Alguém lá no fundo gritou "Salve o rei da terceira série". E, ainda ofegante, ele respirou aliviado. Pois sabia que, dali pra frente, a ordem natural das coisas não seria mais tão natural assim.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Tempos modernos.

Chega cansado do trabalho. Abre a porta. Afrouxa o nó da gravata e desabotoa a camisa branca manchada pelo suor do dia a dia. É um homem trabalhador, do batente. Resultado de uma criação dura, fria, e por diversas vezes, desumana. Erros que seu pai cometeu e que, sem perceber, ele deu continuidade. A mesma rigidez, o mesmo cinto, a mesma incompreensão. Tudo o que ele odiava no seu velho, seus filhos odeiam nele. Pega um xícara de chá e, só de cueca, senta-se na poltrona. Controle remoto do lado direito, livro do lado esquerdo. O livro é o plano B. Liga a TV. Canal um, pouca vergonha. Canal dois, baixaria. Canal três, putaria. Irritado, esbraveja baixinho: "Onde foram parar os velhos costumes? Esse mundo é uma vergonha". O homem sentado no sofá parou no tempo do romance, do cortejo, do pegar na mão. Desliga a televisão e abre o livro. Lá uma história bem antiga, do tempo da inquisição, é contada. Nada de sexo, nada de bebidas, nada de música alta. Nada de diversão, também. Bem do jeito que ele gosta. Após uns bons minutos envolto na leitura, o homem seminu chega à uma conclusão: havia nascido na época errada. Ele, como toda a humanidade, deveria nascer e morrer sem enxergar o fim dos bons costumes, da pureza. Baixa um pouco os óculos de armação sisuda e olha para a direita. Na mesa de cabeceira, uma foto da mulher, já falecida. Foi uma esposa e mãe exemplar, porém submissa. De repente, um sentimento avassalador de saudade invade o peito do homem. Fecha o livro com a espontaneidade de uma criança e pega o telefone. Vasculha alguma coisa no caderno de endereços. Passa pelo contato dos filhos, do irmão e dos amigos do xadrex. Encontra o que queria. Com os dedos trêmulos de ansiosidade, disca o desejado número. Do outro lado da linha, para seu alívio, a voz diz: "Seja bem-vindo ao Loucuras na Noite. Aguarde que uma das nossas deliciosas meninas já irá atendê-lo".

domingo, 16 de agosto de 2009

Vida nova. Nova vida.

Henrique acordou nesta segunda-feira sabendo que, agora, as coisas iriam melhorar. Seus pés tocaram o chão com a confiança de que o futuro seria diferente. Lembrou-se das palavras aconselhadoras de sua mãe. Da preocupação exagerada do seu pai. Lembrou-se, também, que seguiu seus sonhos. Seu maior erro. Pelo menos, até ali. Foi até o banheiro. Ligou o torneira. Água fria, para mudar o aspecto do fracasso. A ocasião pedia uma mudança. Foi à prateleira, pegou o melhor perfume e tomou um novo banho. Foi ao armário, pegou as melhores roupas e sentiu-se um faraó. Ele havia se preparado a vida inteira para aquilo. Aquela nova realidade. A sua nova realidade. Deu uns passos até a cozinha e, enquanto o café não ficava pronto, ensaiou novamente como se apresentaria. "A primeira impressão é a que fica" repetia para si mesmo, mentalmente. Só Henrique era capaz de compreender Henrique. Café pronto. Forte. Sem açucar. Desceu bem. Despertou a auto-confiança do homem. Em cima da mesa, uma revista do mês passado. Folheou-a com o objetivo de adquirir alguma cultura, algum assunto. Percebeu tratar-se de uma revista de celebridades. Inútil para o momento. Inútil para sua vida nada glamurosa. Destino: lixo. Igual aos conselhos dos seus pais. Olhou no relógio. Dez minutos para o ônibus passar. Precisava correr. Foi até o espelho. Uma última disfarçada na careca que ameaçava nascer. Pasta num braço, currículos no outro. Sorriso na cara. Otimismo. Foi-se em busca da tal mudança.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Sem palavras.

Do silêncio de um quarto abafado pelos trinta e dois graus de uma tarde de domingo, ele anda de um lado para o outro, em busca de alívio. Não para o calor, mas sim para a ansiedade. A situação é de se estranhar. Afinal, o rapaz sempre foi supremo com as palavras. Na realidade, sempre se expressou muito melhor no mundo de papel do que no mundo real. Entretanto, ali, especificamente naquele dia, havia esquecido o abecedário. Não literalmente, apenas metaforicamente. Com os olhos confusos, sentia-se sem esperanças perante o branco da folha, onde outrora reinava absoluto. A sensação de fracasso é avassaladora.
“O que diriam se me vissem agora?”, pensa o prodígio, ainda desacostumado com aquele vai-e-vem de idéias vazias e inúteis. Num claro sinal de preocupação, ele olha para os lados. Ufa. Não tem ninguém. Uma gota de suor frio escorre pela sua face direita. Procura algo nos bolsos que possa clarear sua mente. Nada acha. Coça insistentemente os longos cabelos encaracolados, e enquanto o faz, tenta desesperadamente disfarçar o seu despreparo em lidar com a derrota. O que não é pra menos, tendo em vista seu histórico.
Aos dez anos, ganhou o concurso de redação do colégio, que hoje ostenta seu nome. Aos doze, publicou sua primeira crônica no jornal mais lido da região. Aos quatorze, lançou o primeiro romance, finalizado aos treze. Aos quinze era colunista fixo da maior revista do país. Aos dezessete, sentou-se ao lado de Veríssimo na FLIP. Aos dezoito permaneceu por trinta e três semanas seguidas no primeiro lugar dos livros mais vendidos. E, semana passada, aos vinte, estreou seu novo roteiro nos cinemas, o qual a crítica já enaltece como “inacreditável”.
Porém, hoje, o novo Machado, não é ninguém. É só mais um escritor maldito, fã de Trotski e Kafka. Daqueles ruivos, barbudos, cabeludos e sujos, que escrevem versos nas paredes com um pedaço de carvão. Comparação que, obviamente, só pode ser feita se ignorarmos sua cobertura em Copacabana, seu carro alemão último tipo e sua namorada supermodelo francesa. Ele sempre teve uma queda pelas francesas, fruto da forma como Bukowski as descrevia. Bukowski é seu autor preferido, em segredo. Isso porque, a elite, que tanto enche seus bolsos com dólares e euros, não gosta de Bukowski. Vai entender.
Inconformado e desacreditado, ele rabisca algumas coisas. Algumas porcarias. Por motivos óbvios, não gosta do que está escrito, mas tenta convencer-se do contrário. Pensa, por uns instantes, ser essa a sua redenção, mas passa batido pelo devaneio. Busca uma opinião sincera com alguns amigos não tão famosos quanto ele, mas logo descobre que quer ouvir o que quer. Nada além disso. A sinceridade é dura com tudo aquilo sem qualidade. Sem sentimento.
Sentimento. É óbvio. Numa expressão de genialidade, ao mentalizar tal palavra, o talento adormecido do jovem rapaz desperta repentinamente. Ele sente um tremor subir pelos joelhos em direção aos braços. É o sinal de que as coisas estão voltando ao normal. É um sinal de que ele é, sim, tudo isso o que dizem. A confiança cresce incontrolavelmente, superando seu ego gigantesco. Ele estica-se na cadeira de couro de jacaré, leva as mãos atrás da cabeça e começa a recordar-se de tudo o que realmente importa.
A distância, a saudade, os momentos, os dias, os meses, os anos, a cumplicidade, a identidade, os sucessos, os insucessos, o conhecimento, a experiência, a criança, o adulto, a inteligência, os limites, o nervosismo, a teimosia, a alegria, a raiva, os arrependimentos, a espontaneidade, a responsabilidade, a irresponsabilidade, os conselhos, o apoio, a preocupação, o acalento, o ombro, o sangue, os laços, o abraço, o beijo, o herói, o homem. O amor. A eternidade.
E no meio daquilo tudo. No núcleo daquele turbilhão de emoções e sensações. No centro de todas suas lembranças boas e ruins, percebe que nada que escrevesse bastaria, nem seria necessário. Toda e qualquer palavra seria substancial, sintética. A importância daquele dia, daquele domingo, era superior a tudo, inclusive ao seu talento precoce. Amor de pai e filho não se descreve, nem se escreve. Amor de pai e filho se sente. Na pele, não no papel. E assim, com um pequeno sorriso nos lábios grossos, ele assina seu nome, dobra a folha em branco e sela a carta. “Ele vai entender”, pensa. Pois é. Pai sempre entende.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Tudo escuro.

“How deep is your Love?” cantava o autorádio do Fusca 67 de Josué. Homem de meia-idade, um pouco desnutrido e, em breve, careca. Sempre usava a mesma camisa florida em ocasiões especiais como aquela. Um visual meio anos setenta – a melhor época da vida de Josué. A sua juventude.
Enfim chega ao seu destino. Pára o carro. Tenta esconder a calvície, ajeita o colarinho da camisa e, confiante como um Deus, desce. Na bilheteria, pede à simpática e humilde mocinha duas entradas. O filme ele nem sabe o nome. Sabe, simplesmente, que é uma linda história de amor, como ele julga ser a dele.
Meio constrangido com os belos olhos da mocinha da bilheteria, apanha as entradas e vai devagarzinho até a lojinha. Pede tudo em dobro. Duas pipocas sem manteiga, dois refrigerantes e dois pacotes de bala de goma. Satisfeito, vira-se de costas e vai saindo. Treze passos à frente, dá meia-volta. “Se eu esquecer o chocolate ela me mata” – exagera para o adolescente cheio de espinhas do caixa.
Senta-se no banquinho em frente à sala três enquanto arruma a bagunça causada pelo excesso de guloseimas. E lá fica, por uns seis minutos, só matando tempo. É de praxe, Josué só entra na sala quando ouve o barulhinho do retro-projetor. Nem ele sabe por que faz isso. Só sabe que faz.
O chiadinho começa e um apressado Josué entra na sala, deixando algumas pipocas pelo meio do caminho. Corajoso, adentra aquela escuridão. Cheiro de velho. Cheiro de bons tempos. A única coisa que ilumina seu caminho é a pouca luz que irradia da telona ainda em branco. Finalmente, toma seu lugar. O de sempre: quarta poltrona da esquerda para a direita, sétima fileira.
Josué está impaciente. Olha para os lados a cada vinte segundos. “A pipoca tá esfriando e eu tô morrendo de vontade de abrir essas balinhas” – pensa ele, repetidas vezes. Mas, nada. Nada nem ninguém atendem seu clamor mental, a poltrona ao seu lado continua vazia como sempre. Até que, no quinto minuto do filme, acontece.
Uma moça alta, de olhos verdes e longos cabelos encaracolados aproxima-se e pergunta:
- Com licença, esse lugar tá ocupado?
- Tá sim. Não tá vendo? Com tanto lugar pra você sentar porque vir sentar aqui?
- Poxa, desculpe. É que eu já sou meio cegueta, ainda mais nessa escuridão toda. – ri desconcertada, a simpática jovem.

Nesse momento, Josué é um babaca, e sabe bem disso. Mas, ainda assim, nem dá bola. Finge que não é com ele. Só uma pessoa importa, embora ela esteja um pouco atrasada. E assim o filme continua, apesar do clima um pouco pesado naquela sétima fileira que, até agora, tem só três pessoas: a moça, Josué e as pipocas. O resto das pequenices ele já comeu. Culpa da ansiosidade. Ou então, culpa da culpa mesmo.
Na tela, o amor vai se desenrolando e se enrolando. E lá pelos trinta minutos, depois do primeiro beijo entre o mocinho e a mocinha, a moça resolve quebrar o gelo.
- Eu adoro esses filminhos. É tão romântico. – fala baixinho.

Josué finge que não ouviu.
Ela insiste.
- Meu nome é Bárbara. Eu moro aqui perto, logo atrás da padaria. Eu nunca te vi pelo bairro.
- A única coisa que me faz vir aqui é o cinema. – diz Josué, rendido.
- Poxa, que pena. O bairro é lindo à noite.
- Não acho.
- Então não é só o cinema que te faz vir aqui, não é.
- Claro que é.
- Ué. Mas como você pode dizer que não acha o bairro lindo, se não o conhece?
- É... Bem...
- Que tal uma cerveja depois do filme? Eu ponho na minha conta. O Dionísio, dono do bar da esquina, é amigão do meu pai. Me viu nascer.

Em silêncio, Josué não acredita. Primeiro, como a moça pode dar em cima dele, mesmo sabendo que é comprometido? Segundo, como pode uma mulher, de calça jeans rasgada e camiseta hippie mal passada, ficar linda daquela forma – e ainda por cima olhar para alguém como ele? Josué não vê explicação plausível, mas, ainda gago, reluta.
- Sabe o que é... é que eu não sou muito de beber.
- Um refrigerante? – Bárbara é insistentemente linda.
- Olha, moça, obrigado pelo convite, mas não posso aceitar.
- Mas, por quê? Parece que você também tomou o maior toco.
- Eu tenho meus motivos.
- E quais seriam?
- São meus. E de mais ninguém.

Bárbara nem responde. Ao invés, troca o belo sorriso por um rosto sério, estilo caixa do Banco do Brasil, permanecendo assim até o final da sessão. Ao acender das luzes, levanta-se como se quisesse fugir e sai, para não mais voltar.
Já faz alguns minutos que a grande tela se apagou em um branco silencioso. Josué permanece sentado, tentando compreender o que acaba de acontecer naquela sétima fileira. Respira fundo, amarra o sapato. Tira um lenço do bolso, assua o nariz. Sai da sala, joga as sobras no lixo.
Com as mãos no bolso e de cabeça baixa, Josué, pé ante pé, vai até o Fusca. Abre a porta, senta no banco. Ameaça chover lá fora. Ele pega a carteira, abre-a e tira uma foto já amarelada pelo efeito do tempo. Uma moça bonita, linda, de olhos verdes e longos cabelos encaracolados. Josué beija a foto, como se fosse a primeira das últimas vezes.
- Ô, Melina, que saudades das nossas noites de quinta-feira.

Uma lágrima escorre. Josué tira as entradas do bolso e, junto com a foto, guarda-as na carteira, para fazer companhia para os outros cem sucessos e fracassos de bilheteria que ali habitam. Liga o carro e vai pra casa. Até quinta que vem.