segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A grande mãe. Capítulo III: Decisão.

E lá estava eu, cara a cara com meu fim. Dourado, frio, sem emoções. Parecia-se bastante com o Pai. Baixei a arma e verifiquei a quantidade de balas no tambor. Completo. Virgem. Engatilhei-a cuidadosamente, com carinho. Não é todo dia que eu posso atirar uma calibre cinquenta. Com certeza o impacto seria muito maior que a minha nove milímetros. Respirei fundo. Me senti preparado. Olhei para trás e vi Yuri, de costas para mim. Eu precisava dizer uma última palavra.
- Yuri?
- Sim?
- Adeus.

Ainda ajoelhado, fechei os olhos e apertei o gatilho com firmeza. Uma vez. A testa se abriu. Duas vezes. Cérebro no asfalto. Três vezes. Lá se vai o olho esquerdo. Quatro vezes. Adeus, nariz. Cinco vezes. Maxilar partido ao meio. Seis vezes. Rosto? Com um pouco de sacrifício me levantei e fui conferir o estrago que tinha feito com o velho Yuri. Acho que me excedi. Seis balas de magnum. Não precisava de tudo isso. Ele não merecia. Eu não tinha o direito. Meus sentimentos ameaçaram um motim, mas eu os contive a tempo. Abri o porta malas. Peguei-o no colo e joguei lá dentro. O olho e o maxilar ficaram no chão. Chutei-os para longe.
Abri a porta e entrei no carro, dessa vez no banco do motorista. Olhei para trás e Sergey estava em pânico. Completamente travado. Branco como um fantasma, violentas gotas de suor escorriam pela sua testa. A boca aberta, as mãos apertadas. Focalizei seu rosto com o retrovisor e dei partida no carro. Entrei na estrada a cento e vinte por hora e assim decidi permanecer. Vinte e cinco minutos me separavam da Fábrica. Infelizmente, eu teria muito tempo para pensar nos meus próximos passos. Fitei os olhos no horizonte. Branco, morto, sem graça. Depois de mim, a neve era a maior assassina que a Rússia já viu.
Infindáveis minutos depois, de longe já dava para ver a Fábrica. De fato, ela chamava a atenção. Hoje em dia, não se vê muitos outros portões pretos de três metros de altura, com uma estrela talhada em bronze no topo. Agora, se a entrada já chamava a atenção, o interior era um inferno gelado. Máquinas de triturar carne, cadeiras com algemas, materiais de tortura, armas, sangue e restos de corpos em decomposição. Era para lá que qualquer membro da Família deveria se dirigir, junto de sua carga viva ou morta, ao fim de uma faxina. Ironicamente, o local que deveria marcar o fim de uma faxina, era só o começo dela.
Parei em frente ao portão e desliguei o carro. Inclinei-me um pouco para trás e acertei meu melhor soco no nariz de Sergey. A reação foi imediata, assim como o sangue. Sem falar nada, desci do carro, alongando-me para abrir o portão de meia tonelada. Sergey veio logo atrás, com a cabeça inclinada. Não restava dúvidas de que ele tinha entendido a mensagem. O portão se abriu com um som perturbador, digno de filmes de terror hollywoodianos. Refleti sobre maneiras diferentes de fazer americanos sangrarem. A mais criativa foi trancá-los num ringue e jogar um único cheeseburger lá dentro. Entrei no carro e acelerei. Era isso. Eu estava novamente na Fábrica. Lar doce lar.
Um a um, as cargas e Yuri foram despachados. Alinhei-os um ao lado do outro. O traficante à esquerda, Tristan no meio e Yuri à direita. Sem nem pensar, retalhei em dez o corpo do traficante e fui passando as partes para Sergey, que as lançava no triturador. O nariz dele ainda pingava um sangue escuro. O vermelho, em contraste com a neve, era maravilhoso. Mais maravilhoso ainda eram os pedaços de corpo, que entravam relativamente inteiros e, em questão de segundos, viravam carne moída. Ó, violência, como és bela. Nunca me deixe. Por Deus, nunca me deixe.
Trabalhávamos como uma perfeita equipe. Sergey limpava o chão e eu o triturador. Era um trabalho sujo. Era um trabalho que eu realmente gostava de fazer.
- Cacete, Sergey! Pra que tanto capricho? Logo mais a neve derrete e lava o sangue.
- É isso. O sangue.
- Tá. É o sangue. E o que que tem o sangue?
- Eu não suporto sangue.
- Talvez esteja na hora de você fazer uma faculdade. – levantei a realidade.
- Entre uma faculdade e a sua família, você ficaria com o quê? - Sergey covardemente perguntou.
- Eu? Eu ficaria com meus colhões.

Como era de se esperar, Sergey escolheu o silêncio como resposta. E assim as coisas permaneceram por uns minutos. Bons minutos, diga-se de passagem. Até que, quando tudo parecia estar melhorando, um ruído rasgou e mijou em cima da minha tranquilidade. Segundos depois, quando meus ouvidos já estavam devidamente acostumados, percebi tratar-se de uma música. A mais filha da puta das músicas. Impaciente, procurei a origem daquela tortura por todos os cantos. A segunda ironia do dia. Em uma sala de tortura eu buscava uma maneira de dar um fim à própria.
E ao passo que a música continuava e minhas tentativas de encontrá-la eram frustradas, eu me tornava um poço de ódio, só esperando Sergey voltar lá de fora para aliviar minha raiva. Encostei perto do corpo de Tristan para pensar numa estratégia e percebi que a música estava cada vez mais perto. Grudei meu ouvido ao seu corpo e comemorei. Havia encontrado. A música parou. Puxei um objeto do seu bolso traseiro. Olhei. Um calafrio percorreu minha espinha em velocidade recorde. Tentei me manter corajoso, mas por uns instantes não consegui. Na tela do celular, lia-se Ludwig Kalashov, carinhosamente chamado de Pai.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A grande mãe. Capítulo II: Negociação.

Virei a chave e levantei a tampa. O cheiro subiu forte, impiedoso, embrulhando meu estômago. Os corpos ainda exalavam uma espécie de calor e o sangue ainda escorria, lentamente. Com muita calma, passeei com os olhos por cada um deles. Contei um total de dezoito furos no Tristan. E mais umas dezenas no traficante viado. Sorri orgulhoso, superior como sempre. Puxei toda a sujeira que encontrei dentro de mim e as cuspi em cima daquela pilha de lixo. Bati o porta malas com força, o que fez respingar um pouco de sangue e talvez miolos no meu terno preto. Yuri desceu do carro e veio ao meu encontro.
- Cacete, você não consegue parar de fazer sujeira.
- É assim que gosto das coisas, Yuri. Sujas. Reais.
- Ahhh, garoto. Um dia, que talvez pode nem chegar, você vai ver que não é assim que o mundo gira.
- É assim que ele gira pra mim. Não tenho do que reclamar até agora.
- Você já esteve no Japão?
- Como?
- No Japão. Você já esteve por lá?
- Claro que não. Nunca precisei fazer uma faxina por lá.
- Pois é. Há uns três anos atrás, fui até lá persuadir um Yakuza a fazer um harikari.
- Harikari? Pensei que você fosse um assassino, e não um diplomata.
- A maior arma que nós temos são as palavras, camarada. Enfim, depois de feito, parei num bar pra dar uma cagada e, ao dar a descarga, qual foi a minha surpresa quando vi que a água girava ao contrário.
- Sério?
- Sério.
- Tá, mas o que essa porra dessa água tem a ver com tudo isso?
- Tem a ver que, pra eles, a água girava pro lado certo, mesmo girando para o lado errado. É a mesma coisa que acontece com você e esse seu mundinho.
Parei para refletir por alguns segundos.
- Yuri?
- Sim.
- Talvez você tenha razão. – consenti, de cabeça baixa.
- É claro, meu bom garoto. Você pode aprender muito comigo. A vida é uma merda, eu sei. Mas ela não precisa ser sempre uma merda.
- Mas, me diga, quem eu vou culpar pela merda que nossas vidas é?
- Mas, me diga você, pra que um culpado, um responsável pela merda das nossas vidas?
- Justiça.
- Justiça? JUSTIÇA? Não seja tolo. O que foi que você disse agora pouco no carro, mesmo? Alguma baboseira sobre a inexistência da justiça e o reinado absoluto de leis fracassadas.
- Foi mais ou menos isso.
- Qual foi a última vez que você esteve em uma mulher?
- De graça?
- Claro.
- Nunca.
- Muitas coisas começam a fazer sentido agora. Sabe? Quando você se esquece do amor, o verdadeiro amor, acaba se lembrando dos sentimentos opostos. E esses, meu filho, ao contrário do amor, nunca mais vão embora.
- Yuri, você me falar sobre água de privada japonesa, tudo bem. Agora, guarde sua melação amorosa para suas prostitutas. Eu só quero saber uma merda de uma coisa.
- Diga, Bohr.
- O que eu faço agora?
- Sinceramente?
- De preferência.
- Honre suas marcas, sua história, sua família.
- É o único jeito, não é?
Yuri só concordou com a cabeça. Seu silêncio se esforçava para demonstrar tristeza.
- Então que assim seja. Eu só gostaria de uma coisa.
- O que quiser.
- Que fosse feito com a sua arma.

Mais uma vez, Yuri concordou com a cabeça. Buscou por uns instantes seu bolso traseiro. Estendeu-me sua Magnum dourada. Mesmo sem qualquer sol, ela reluzia bravamente. Somente quinze pessoas haviam visto um fim naquelas balas calibre cinquenta. É um número mínimo, considerando um homem com mais de mil e trezentas mortes no currículo. A aceitei de bom grado. Com um firme aperto de mãos e um olhar quase sincero, dei adeus ao meu velho parceiro. Yuri permanecia firme, integralmente intacto. Dei cinco passos na direção contraria. E qual foi a minha surpresa ao ver que, a cada passo, não me vinha nada à cabeça. Nenhuma lembrança ou memória, nenhum prazer ou desprazer. Só uma aflição, uma necessidade de cumprir com meu dever. Parei. Ajoelhei. Colei o cano em minha têmpora direita.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A grande mãe. Capítulo I: Direção.

O ar dentro do carro está pesado demais para um pulmão maltratado como o meu. O responsável por isso eu não sei dizer quem é. Podem ser os charutos e cigarros insistentemente sugados pelos babacas ao meu lado. Pode ser o cheiro de sangue fresco que vem do porta-malas. Ou pode ser a tensão. Ouço um bater de dentes vindos do banco de trás. Faz frio lá fora, mas eu sei que o que Sergey está realmente sentindo é medo, o mais perigoso dos sentimentos. Ao meu lado, no banco do motorista, Yuri levanta a mão esquerda. Noto a existência de algo estranho embaixo de sua unha. Deve ser cérebro.
- Bohr. A gente precisa fazer alguma coisa. Você sabe disso. – Yuri me questiona, chacoalhando as pernas repetidas vezes.
- É claro que eu sei. E pelo visto eu sou o único aqui que ainda sabe onde está a própria cabeça.
- Seu moleque. Na KGB você não duraria duas horas.
- Você esqueceu que aqui não é a KGB. Não há justiça, só há leis, que para nós não existem mais.
- Seu bolchevista dos infernos. O trabalho era pra ser simples. Um passeio no parque.
Calei e consenti.

De fato, o trabalho era simples. O Pai considerava, no almaço com as instruções, como uma “pequena faxina”. Um traficante pouca bosta estava começando a incomodar as transações entre o leste e o oeste da motherland. Era entrar, erguer as armas, deixar que elas fizessem seu trabalho e sair, levando o mindinho como souvenir. Entrar foi fácil. A porta traseira destrancada trouxe à tona uma estranha sensação de boa vizinhança. E foi aí que a tranquilidade e o prazer em trabalhar chegaram ao fim. Barulhos estranhos vindos do quarto chamaram a atenção. Sergey foi na frente. Abriu a porta. Explodiu em gargalhadas. Eu cheguei depois, seguido de perto pelo Yuri. Diante dos meus olhos, dois animais, um dentro do outro, olhavam assustados para seus capatazes. Sergey só parou de rir quando descarreguei dois pentes da minha Kalashinokov no corpo suado das duas bichas.

Uns segundos de silêncio perfuraram a bagunça que se passava em nossas cabeças. Agora, ouço Sergey chorar. Ele sempre foi fraco. Um peso morto que, de vez em quando, se arrasta, como se pedisse clemência. É filho de Noukhaev, uma lenda na Família devido ao sadismo inexplicável. Deu conselhos ao Pai que o colocaram onde ele está hoje. E é só por isso que ele foi selecionado para juntar-se a mim e a Yuri, os líderes no ranking de mindinhos coletados. Yuri se vira em minha direção. Está tão perto, que posso sentir seu bafo de vodka queimar minhas narinas.
- Pensasse antes de atirar, seu verme. – disse, sem tentar esconder a irritação.
- Sodomia não é passível de julgamento. – respondi, tentando me manter são.
- Seus princípios não valem de nada quando estamos falando do filho do Pai.
- Não tinha como saber que aquela BICHA ERA O TRISTAN. BICHA DO CARALHO. TINHA UM CARA DE CEM QUILOS MONTADO NELE. TINHA UM PAU ENTRANDO NAQUELE LIXO TODO. – foda-se a minha sanidade.
- Isso não nos serve de nada agora.
- É.
- Você sabe o que vai acontecer, não sabe?
- O que vai acontecer depende do que será feito daqui pra frente.
- E depois disso?
- Depois disso o quê?
- Depois de tudo o que faremos daqui pra frente.
- Faremos? Eu sei o que eu farei, e quem quiser sobreviver que me acompanhe.
Ninguém demonstrou qualquer reação. Desci do carro e fui conferir nossas visitas indesejáveis.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Machos e suas machisses.

Encostado na parede pixada do bar, ele cruzava os braços e esticava as pernas, na tentativa de valorizar a pouca bagagem que carregava. Um charuto vagabundo pendia no lado direito dos seus lábios e um copo de bebida era esquentado pelas suas mãos. Estava lá há mais ou menos duas horas, praticamente imóvel, só trocando a perna de apoio, vez ou outra. A única parte de seu corpo que desobedecia à tendência eram seus olhos, inquietos e irritantes. Rabos incríveis, peitos extraordinários e pernas deliciosas eram sugados ate à última gota por aqueles olhos secos. Arrotou, peidou e coçou o saco. Tudo de uma vez só. Uma loiraça de um metro e oitenta e vestido preto colado virou a esquina, do alto de um salto alto tipo agulha. Parou tudo o que estava fazendo e começou a pensar no que falaria para a gostosa. Aquela era do tipo que merecia uma punheta e, inclusive, umas palavras.
- E aí, posso entrar?
A loira parou, fitou-o de cima abaixo, e respondeu.
- Entrar? Tá maluco? Entrar aonde?
O cafajeste riu, era a pergunta que ele queria.
- Em você, sua gostosa. Quero entrar todo em você.
- Entrar em mim? Como assim? Tipo quando você chega em casa e abre a porta? Ai, não tô entendendo. - o tipo fazia jus aos cabelos.
- Ó, vou ver se você entende. Esse sou eu - disse , esticando o indicador esquerdo - e essa é você - completou, unindo o indicador direito ao polegar direito -. Sacou?
- Mas por que eu sou a bolinha? Você tá me chamando de gorda? - perguntou, preocupada, auto-analisando suas curvas deliciosas.
- Não, caralho! Essa é a sua boceta.
- Boceta? A minha? Mas ela não é assim.
- Tanto faz. Eu tô pôco me fodendo para como é a sua boceta. Eu só quero meter nela.
- Meter nela? Você? Mas por que você não disse antes?
O machão não respondeu.
- Olha, isso eu não sei se posso prometer. Mas por que você não me paga uma bebida e a gente vê no que dá, gostosão?
- Ver no que dá? A única coisa que vai dar alguma coisa hoje é você, sua puta.
A loiraça riu, recebeu um tapa na lomba e foi acompanhando o homem bar adentro.

Aquele era o seu dia de sorte. Nunca uma mulher veio assim, tão gostosa e tão fácil. Cruzou o bar inteiro propositalmente, exibindo seu troféu amarelo. Puxou uma cadeira, ela também. Mandou descer duas garrafas da melhor cerveja da casa, o que não significava muita coisa. Fez seu melhor e mais conquistador olhar. Ouviu o telefone tocar. Era sua mulher.
- A-A-Alô, Amorzinho? É você? O-Oi, minha Vida!
Uma voz feminina e furiosa escapava do celular.
- Eu sei! Eu sei que tá tarde. É tudo culpa minha. Pelo amor de deus, me perdoa, minha Deusa! Não, meu Chêro! Não diz isso! Eu tô indo agora. Eu juro. Juro por tudo o que é mais sagrado. E só pra compensar meu atraso, hoje tem... Adivinha... Massagens nos seus pezinhos lindos!

Nesse momento, o homem lançou uma imitação de bebê que só foi melhor que sua tentativa de portar-se como um macho de verdade. Deixou dinheiro o suficiente para mais umas três doses em cima da mesa, desculpou-se, beijou a loira no rosto e saiu disparado, deixando suas bolas na parede pixada do bar.