segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Primeiro assalto.

O inverno havia recém chegado à cidade. A noite lá fora era fria, densa, pesada. A neblina ofuscava a visão dos motoristas da madrugada e fazia doer as juntas daqueles que dormem em becos e vielas e sofrem por isso. E até mesmo as dos que não sofrem. Lei da selva. Da porta pra fora, a vida avançava calma e temerosa para os corajosos ou os loucos o suficiente de encarar os poucos graus e toda a praga que eles trazem consigo.
Era algo após a meia-noite. Eu voltava do trabalho de cabeça quente e com as mãos pesadas e cansadas de tanto escrever. Parei em um supermercado pra comprar algumas cervejas. Amor enlatado. Um homem com bolsas embaixo dos olhos e andar exausto procurava alguma coisa nas prateleiras. Ele vestia meias e chinelos. E provavelmente sua mulher, grávida, ansiava por ele e pela realização dos seus pedidos. Apesar de tudo, era uma cena bonita. Eu sorri ao imaginar isso e pensei se a felicidade, de fato, era dona de um rosto. Não encontrei respostas, mas encontrei minha cerveja. O homem também encontrou o que procurava. Papel toalha, papinha de neném e uma garrafa de vinho.
Eu, como de costume, tinha coisas demais na minha cabeça. Preocupações e futilidades e planos e sonhos. E todo o resto que vinte e um anos fossem capazes de acumular. Eu fazia vinte e dois alguns dias a partir dali, mas todos me olhassem como se eu tivesse vinte e nove ou algo do tipo. E eu sempre tinha alguma resposta engraçada e mal educada na ponta da língua para esses momentos. E era assim que eu fazia amigos.
Paguei minhas cervejas e alguma coisa que, dizia a caixa, ser lasanha congelada. Crédito. Subi no carro, virei a chave. O calor do motor invadiu o carro e eu fiquei uns segundos aquecendo minhas mãos tão jovens e que já testemunharam tanta coisa e já escreveram sobre tanto sofrimento. E eu me lembrei de uma menina que dizia que eu merecia um soco por cada texto produzido por elas. Por cada palavra infeliz, para cada lamentação. Um soco. E eu pensei que essa era uma prova de carinho incrível. E, para ser sincero, aquela não era a primeira vez que eu pensava nessa menina. Mas eu buscava ignorar esse fato. O nome disso é “autopreservação”, uma palavra que eu nunca fui muito familiarizado. Sempre gostei mais da palavra “coração”. Antônimas, como fica claro.
Engatei a primeira marcha e segui pelo trânsito de volta pra casa. E enquanto eu dirigia buscava alguma distração, algo bonito para se ver, alguma inspiração. Mas a madrugada, nessa cidade, nunca foi lá muito abençoada. Os sinais estavam sempre vermelhos e eu sempre parecia não ligar muito para isso. Teve aquela vez que eu fiz isso e quase morri. Mas também teve aquela vez que eu fiz isso e saí vivo e com uma nova história pra contar. Então, até então, fazer isso valia a pena.
Cheguei, estacionei o carro e a distância da vaga me faria caminhar até em casa. Meus músculos reclamavam a cada passo. O frio os enrijecia e os esticava num ritmo constante. Num ritmo cruel até para o mais resistente dos músculos. Eu engolia a dor e não demonstrava nenhuma expressão. Morto de cansaço e de fome por dentro. E a carcaça do lado de fora a mesma coisa de sempre. Vinte e nove anos, vocês se lembram?
Mas finalmente eu estava em casa. Aliviado, cansado, esfomeado. Abri o microondas, fechei o microondas. Catorze minutos. Liguei-o e ali começava a tortura. A espera, a famigerada espera. E nesse meio tempo mais uma vez pensava na menina do soco. Ela fazia aniversário dentro de uns dias e eu já havia decidido qual seria o presente dela há algum tempo. E embora o presente me parecesse uma boa ideia, ele ainda soava incompleto para mim. Como se ela merecesse mais, como se ela merecesse uma dedicação maior. E, pensando agora, definitivamente ela merecia.
Foi quando eu comecei a escrever. Aquele era o primeiro assalto. As pessoas ao meu redor diziam que eu era dotado de uma certa habilidade para escrever, mas não era por isso que eu escrevia naquele momento. Eu escrevia simplesmente para provar pra ela que eu era capaz, sim, de escrever algo digno não de um soco, mas sim de um abraço ou qualquer outra manifestação pura e verdadeira de carinho. Eu escrevia simplesmente pra ver brotar um sorriso em seu rosto. Tudo o que eu precisava eram lembranças bonitas.
Os catorze minutos se passaram. Os próximos catorze também. E os próximos e os próximos. E minhas mãos tão cansadas, tão machucadas, tão desobedientes tinham vida própria. Elas batiam nas teclas com uma agressividade suave. Aquilo eram as minhas mais belas lembranças acumuladas no último mês se manifestando. Pedindo pra sair. Pedindo para serem a causa do sorriso de uma outra pessoa, além do meu. E eu atendia aqueles pedidos com uma consideração quase paterna. Eu simplesmente sentava ali e deixava que elas fizessem seu trabalho. E elas, minhas mãos, eram felizes assim. E eu acredito que eu também.
O processo se repetiu por uma semana inteira. Algumas noites de pouco sono e algumas manhãs de um curioso e agradável despertar. De certa forma, aquilo me fazia bem, como nos velhos tempos. Ao fim daquilo tudo, eu tinha um punhado de páginas, um punhado de inseguranças e um punhado de boas intenções. E o calendário insistia em atrasar a chegada do dia vinte e nove. E tudo o que eu queria era vê-la e fazê-la feliz. Mesmo com aquele soco que eu nunca levei.

3 comentários:

Tati disse...

Muitos sorrisos pra vc...

Vks'' disse...

Acabei de ser assaltado... meu primeiro... vim aqui ler um pouco e li tudo isso! opasdkposkd

Gostei da forma que escreve! Parabéns

Anônimo disse...

To aqui no laboratório do Dep de Comunicação Social da Unitau vendo seu blog escondido. Tá de parabéns! Sucesso.